Seven – Os Sete Crime Capitais | Especial 30 Anos

A cultura pop tem algo de antropofágico. Quando alguma coisa se torna um clichê ou uma repetição de ideias, logo isso se torna maior do que a obra. O passo seguinte é se distanciar tanto de sua origem que ela parece desaparecer nas brumas do tempo. Quase como uma chuva que não para e vai apagando qualquer detalhe que possa ser visto além daquele lugar-comum. E isso é um pecado.

Talvez uma preguiça de tentar entender como aquilo aconteceu, ou até a soberba de achar que aquilo é genial e nunca foi feito, quando na verdade é apenas uma falta de bagagem. E burrice. Mas apontar isso é mais cólera do que qualquer bom senso. Cada assassino serial que parece estar sempre um passo a frente dos detetives, cada dupla de detetives esmagados por uma cidade que sua corrupção, cada pessoa criativamente morta por uma intenção que resgata algum detalhe sobrenatural da vida do ser humano, de signos até dias da semana. Tudo isso separado pode ter vindo de dezenas de outras fontes, mas juntos, só esteve em um lugar.

No Brasil ele se tornou Seven – Os Sete Crimes Capitais, um subtítulo sem graça para um filme maior do que qualquer erro de distribuição. No original, o “V” se torna um 7, “Se7en” como se a letra tivesse rodado no sentido anti-horário e deixando sua abertura pronta para tudo ser derramado, jogado fora, sem organização. Apenas o caos, como o metrônomo de Sumerset arremessado contra a parede em certo momento do filme.

O metrônomo é um aparelho que, através de um pêndulo e um peso, fica indo de um lado para o outro fazendo um CLIC e contando o tempo de uma música. Como se colocasse tudo e todos em um mesmo compasso. Seven é criado quase como por um metrônomo. Ou até um alinhamento planetário que junta todas essas pessoas nesse mesmo lugar e nessa mesma hora, para fazer a história do cinema pausar sua caminhada para observar a criação dessa obra-prima.

Andrew Kevin Walker não era ninguém. Na verdade era, mas tinha em seu currículo dois microclássicos da era do VHS, O Esconderijo e Brainscan: Jogo Mortal, um tempo onde a pós-vida desse tipo de produções nas prateleiras das locadoras permitia que coisas assim ganhassem vida. Mas se naquele momento, com pouco mais de vinte anos, Andrew não pensava muito em largar seu “day job” para apostar só nos roteiros de cinema, até ter a ideia que mudaria sua carreira. Um filme de serial killer onde o assassino fazia suas vítimas baseado nos famosos e famigerados Sete Pecados Capitais.

O roteiro, na verdade uma espécie de rascunho ou primeiro tratamento, foi comprado por um estúdio italiano. Com o adiantamento o roteirista então se debruçou apenas sobre o texto e sua história. Mas havia um problema: o final. O estúdio não gostava do final, mas Andrew Kevin Walker não ligou muito para isso e fechou sua trama do jeito que imaginava que seria o mais correto. O tal estúdio italiano enrolou tanto e brigou tanto com Walker pelo final que acabou falindo antes do filme ver o sol. Ainda que “ver o sol” em Seven seja algo que recorra apenas ao tal momento tão discutido e renegado pelos estúdios.

Isso mesmo, no plural, já que o roteiro de Walker foi vendido para a New Line Cinema, hoje um braço da Warner, mas na época uma produtora que ainda colhia os frutos de ter apostado suas fichas em A Hora do Pesadelo e ter se tornado um dos estúdios mais badalados dos anos 90. Mas Seven passou a integrar sua “linha de produção” com uma condição: o final (mais uma vez!). A empresa queria uma conclusão menos aberta a mais otimista. Reza a lenda que Walker produziu algo em torno de 14 tratamentos da mesma história. Mills morre. Somerst morre. Doe não morre. Somerset se aposenta. Tracy é sequestrada. Tudo que é possível imaginar em termos de versões de Seven talvez tenha ganhado vida em algum momento. Mas havia um problema, nada ficava bom o suficiente quanto o original.

Principalmente, pois ele é o ápice dolorido de uma batalha intelectual entre dois personagens que quase não se encontram: Somerset e o assassino John Doe. É a visão de mundo dos dois que está em jogo. O policial a beira de sua aposentadoria e vivendo em um mundo onde ele enxerga que a apatia é valorizada e ele não consegue mais viver em um lugar sem essa esperança. Doe olha para o seu redor como uma realidade falha e onde as pessoas estão perdidas em seus pecados, vícios e fraquezas, mas tem a esperança de mudar isso ao invés de desistir e se aposentar, pretendendo deixar um legado onde as pessoas irão repensar seus atos como uma intervenção divina. Ambos metódicos em suas ideias, mas em lados opostos dessa moeda. A casa de Sumerset é impecável, a casa de Doe é quase como um círculo do inferno de Dante, cheio de informações, ideias, sacrifícios e pensamentos que parecem desencontrados, mas é aquilo que o move. O filme começa mostrando a casa do policial e todos seus tons de cinza gelados e sem nada fora do lugar. O fio de esperança da dupla de policiais acaba nesse apartamento onde tudo é vermelho, escuro, marrom e caoticamente organizado. Entre os dois está Mills.

Mills é o instrumento que os dois têm a dispor para realizar suas missões. Mas apenas um deles consegue ser bem-sucedido nisso e quando Sumerset percorre aquele campo iluminado pelo sol, sem um pingo de chuva, gritando pelo nome de seu parceiro, ele sabe que perdeu. Doe ganhou e Seven é sobre isso. Sobre o gosto amargo de um mundo que não quer passar a mão na cabeça de ninguém. Sumerset sabia disso, por isso tinha perdido a esperança lá no começo de tudo.

Esse tripé central do filme também parece nascido para esse filme. Morgan Freeman já era uma força da natureza com três indicações ao Oscar por Malandros de Rua em 1985, Conduzindo Miss Daisy, cinco anos depois, e Um Sonho de Liberdade no mesmo ano que Seven chegou nos cinemas, mas entre outras coisas ainda tinha trabalhado em filmes igualmente enormes como Os Imperdoáveis (aquele com Clint Eastwood), Robin Hood (com Kevin Costner) e Tempo de Glória (talvez um dos clássicos de guerra mais intensos e interessantes do cinema). Com um currículo desses, interpretar o veterano detetive é quase como a principal sustentação do filme.

Seu personagem tem um arco de transformação impressionantemente delicado e emocionante. Do homem sem esperança e cansado, resmungando por não aguentar um novo parceiro jovem, até essa pessoa desesperada por tentar salvar aquele que se tornou parte de sua vida. Há esperança no final de seu Sumerset, há um brilho no olhar que toma conta daquela frieza inicial e há o medo. O diálogo no carro entre os três personagens é uma pérola do cinema e Sumerset parece pego por uma insegurança que nunca existiu em seu personagem, como se a partir daquele momento entendesse que tinha algo a perder.

Essa mudança vem antes do metrônomo sendo arremessado, vem na conversa com a esposa de Mills, Tracy, vivida por Gwyneth Paltrow em um café escuro. O momento onde ele, pela primeira vez, olha para seu passado e tenta se entender através de si mesmo e não como um modo de desvendar os crimes de John Doe. Sumerset vê em Tracy a esperança de um mundo onde ele até aceitaria continuar a ser detetive. Um lugar onde a empatia volta a fazer sentido. Tracy é a peça chave da surpresa final do filme, mas tem significados completamente diferentes para cada dos um três personagens centrais de Seven.

Kevin Spacey era um ator com mais de uma década de experiência em filmes que navegavam entre o obscurantismo e o sucesso em papéis menores, mas era uma cara conhecida, até que ele próprio percebeu que os meses antes da estreia de Seven, talvez o colocassem sob os holofotes. No ano anterior estrelou O Preço da Ambição e no mesmo ano de Seven apareceu em Epidemia e Os Suspeitos, filme que acabou lhe rendendo o Oscar no ano posterior. Com isso em mente, Spacey conseguiu convencer os produtores e o diretor a tirar seu nome, tanto do cartaz, quanto de qualquer outra divulgação e até dos créditos iniciais, sabia que sem qualquer referência a ele, a surpresa do filme seria ainda maior. E ele estava certo.

O John Doe de Spacey não é só um assassino qualquer com toques de excentricidade, é algo mais perturbador, já que todos seus trabalhos são realizações sádicas e precisas feitas por um homem que, ao surgir, aparenta ser frágil e pouco perigoso. Nem ao menos maluco ele parece ser e seu nível de calma e precisão de cada palavra incomoda quem estava a espera de alguém condizente com as violências das cenas dos crimes. Sua maior criação é fechar seus trabalhos através das palavras e não da ação, deixando tudo ainda mais perturbador. A composição de Spacey é fina, limpa e tão fria que parece incomodar a partir desse momento o antes preciso Sumerset, desestabilizando ele, Mills e, é claro, até o filme, levando-o para um lugar quem ninguém mais está confortável, sem prédios, chuva ou corredores para fugir. Não exista mais nada para roubar sua atenção, apenas os três nesse momento que mudou a história do cinema para sempre.

Talvez o protagonista disso tudo seja Sumerset, mas é o Mills de Brad Pitt que empurra o filme. É ele que falha, acerta e se perde em um mundo que achava que conseguiria dar conta. Pitt naquele momento não era mais uma cara desconhecida do público, mesmo vindo de uma carreira que até pouco tempo atrás recheada de participações insignificantes em séries e filmes desconhecidos. Em 1991 Pitt tirou a camisa em Thelma e Louise e foi “descoberto”. Três anos depois se tornou o galã do momento em Entrevista com o Vampiro e mais ainda com Lendas da Paixão. Mas existia um outro Pitt por trás desse cara bonitão que provocava suspiros.

Em 1990 Pitt já era bonito e galã, mas se provocou no tenso Dias de Violência, mas nada parecido com sua atuação no incrível Kalifornia. Ali, escondido por um psicopata sujo e violento, surgia um ator que parecia querer mais do que ser só sua beleza. No mesmo ano participou de Amor à Queima-Roupa em uma divertida ponta com um personagem quase escondido pela composição e os trejeitos carregados e provocativos. Seven seria seu prêmio, a prova de que ele conseguiria ser um galã com consistência e boas decisões de carreira.

A escolha é impressionante precisa. O Mills de Pitt é o oposto completo do Sumerset de Freeman. Inseguro, falando mais do que devia, correndo antes de andar, particularmente iletrado e sem paciência para os livros, emocional, carinhoso, agarrado com seus cachorros e apaixonado pela esposa. Mills é apenas emoção e isso é complicado em um mundo onde o coração não deveria ditar as ações. Se estabelecer nesse mundo e ser respeitado por Sumerset é um trabalho ainda mais complexo e perigoso para ele. Pitt constrói então esse personagem que parece deslocado diante de sua própria energia solar dentro de uma cidade onde o sol parece não nascer por trás das nuvens. A chuva incessante é como um reflexo da sua luta interior.

Essa chuva que não para também é uma questão prática, já que seria mais fácil que chovesse o tempo inteiro, mesmo artificialmente, para que nos dias de chuva real a produção pudesse continuar acontecendo. Uma solução que junta necessidade técnica com construção de narrativa. Um tipo de decisão que tem a assinatura do “semi-estreante” David Fincher, mas que se tornaria uma assinatura de sua carreira: o capricho.

Andrew Kevin Walker pode ter criado Seven, mas sem Fincher talvez o filme tivesse corrido para um outro lugar, afinal, ninguém queria aquele final. Mas o diretor fez questão!

Mas Fincher não era um desconhecido da indústria, muito pelo contrário. Entre mais de uma década de trabalho com videoclipes, Fincher assinou talvez alguns dos clipes mais famosos da história, como Vogue da Madonna e o Freedom 90! de George Michael. Talvez isso o tenha catapultado para uma das franquias mais celebradas e populares de Hollywood. Alien 3 caiu em seu colo depois de perder outros diretores e roteiristas, mas parte do trabalho de todos eles ainda ficou soterrando Fincher, que brigou com o estúdio durante toda produção, perdeu o corte do filme e por pouco não deixou de reconhecer seu trabalho no filme. Logo depois, já de volta aos clipes e também arriscando alguns comerciais, Fincher afirmou que “preferia morrer com câncer no cólon do que voltar a fazer outro filme”. O que para a sorte da sétima arte, acabou não acontecendo.

Inicialmente Seven iria ser dirigido pelo mesmo Jeremias S. Chechik, de Férias Frustradas de Natal, mas sem o final. Quando o filme foi para a New Line, o diretor não foi junto e nesse momento entrou em cena Fincher, que só o faria se fosse mantido o final original de Walker. E o final disso a gente já sabe. Mas o diretor fez mais.

O Seven de David Fincher não é apenas um filme sobre como Sumerset e Doe lidam com os pecados da humanidade usando Mills como o instrumento de suas intenções de mudar o mundo. Fincher fez um filme que mudou a história do cinema. Meio noir e meio terror, com esses dois personagens tendo que lidar com um mundo exposto pela violência de um monstro que pretende jugar e executar suas vítimas como a mão divina. O vil e o sagrado se misturam de modo exposto e provocante. E qualquer oportunidade de esfregar essas imagens na cara do espectador é aproveitada e valorizada. Quando um dos assassinatos não é retratado, a descrição do legista é tão meticulosa que a imagem na cabeça do espectador é ainda mais desconfortável. A prostituta morta não é mostrada, mas o homem vestindo um aparato de couro e lâminas aparece duas ou três vezes na tela para que, do lado de cá da tela, um incômodo tome conta de qualquer um que esteja assistindo.

Fincher começa convidando o espectador a olhar os assassinatos através de planos detalhes e uma câmera meticulosa, mas quando isso se torna quase comum, ele dá um giro de 180° e te coloca nesse lugar onde sua imaginação toma conta das imagens e deixa tudo ainda mais poderoso e pecaminoso. E não há chuva que consiga lavar todos esses pecados. Não há chuva que limpe essa cidade suja e permita que ela tenha algum tipo de personalidade além das frestas dos arranha-céus. Não há horizonte na cidade e a câmera de Fincher está tão próxima desses personagens que é como se aquele mundo estivesse sempre arcado sobre eles.

Mas quando Fincher te dá um horizonte e um sol brilhando é tarde demais. Ninguém quer mais aquilo, porque, como Sumerset, todos têm a impressão de que aquilo não vai rumar para uma conclusão minimamente feliz. O trio de personagens no carro abrindo o terceiro ato coloca todos em uma posição onde nunca estiveram durante todo o filme. Mills se deixa levar pela raiva de descobrir sua impotência diante de alguém que ele não entende. Sumerset, pela primeira vez, tem as respostas para suas perguntas, mas não se conforma com a lógico de Doe, que se expõe e demonstra o quanto seu plano é perfeito, ainda que abominável. Naquele momento, sem correrias, suspense ou qualquer ação, Fincher olha para seus personagens e os expõe. Doa a quem doer.

O que tem dentro da caixa de Seven é aquilo que mais ninguém teve coragem de fazer. Depois disso, a quantidade de filmes com assassinos excêntricos e crimes criativos em cidades sem nome beira as dezenas, com cada um colocando sua dupla de investigadores tentando solucionar esse quebra-cabeça. Porém, dos 14 tratamentos do roteiro de Walker, somente um nunca foi copiado. O assassino já foi perseguido, sequestrou parentes e parceiros, colocou a cidade em perigo, enganou um dos dois enquanto estava em um lugar e ele no outro, já terminou em estações de metro, igrejas, esgotos, barcas, casas afastadas da cidade e até covis sujos, mas nunca tentaram repetir o que estava dentro da caixa. Seven mudou o jeito que o cinema olhou para os serial killers e junto de Silêncio dos Inocentes são a matéria-prima para o gênero nas últimas quase quatro décadas.

Olhando para trás e vislumbrando esses filmes, muitos (muitos mesmo!) foram erros e até alguns foram acertos, mas somente um que nasceu indigno até para ser filmado, mas mostrou que ser torpe e abjeto nem é tão ruim assim quando o objetivo é se tornar um dos maiores filmes da história do cinema.


“Se7en” (EUA, 1995); escrito por Andrew Kevin Walker; dirigido por David Fincher; com Morgan Freeman, Brad Pitt, Gwyneth Paltrow, R. Lee Ermey e Kevin Spacey


Trailer do Filme – Seven – Os Sete Crime Capitais

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