[dropcap]E[/dropcap]xistem três filmes dentro de Suspiria: Dança do Medo: um remake poderoso, um terror incrível e um drama pretensioso que dá sono. Na verdade, o novo filme de Luca Guadagnino é todo dividido em três, então esse é apenas mais um lado dessa trindade.
No primeiro desses filmes, Guadagnino recria para o cinema de hoje o clássico do gênero de 1977 do mestre Dario Argento. Mas não simplesmente uma copia e sim um ponto de partida que sai do mesmo lugar e consegue até ir além da obra original. Como se soubesse da importância de acrescentar uma nova experiência, tanto para os antigos fãs, quanto para um público fã do gênero muito mais “cascudo” e em busca de algo novo.
Portanto, esse novo Suspiria é novo, e isso já deve bastar para grande parte do público. Nele, uma dançarina americana, Susie (Dakota Johnson), chega a uma famosa companhia de dança alemã e, aos poucos, vai descobrindo que há algo de diferente e misterioso naquele lugar.
Diferentemente do original, que apostava muito mais nesse mistério envolvendo assassinatos e seguia o estilo Argento de desconforto visual (vulgo um delicioso gore intenso e sem limites), Guadagnino, junto do roteiro de David Kajganish, busca uma experiência que beira o sensorial e o incômodo de estar acompanhando essa história densa e que não parece ter nenhuma possibilidade de fugir de um final que não seja violentamente surpreendente.
Guadagnino aposta então não só nessa história que se constrói, tanto com elementos do original, quanto com uma mitologia completamente nova, como também com uma história de amor e arrependimento que permeia toda essa experiência. O que te leva a esse “segundo filme”: um terror incrível.
Criar medo não pode e não deve nunca ser apenas um acorde alto ou uma figura macabra pulando do escuro, ainda que isso funcione, o terror (ou horror), está sempre muito mais no terreno da sensação e do drama. O novo Suspiria então conta três histórias que se afunilam em um clímax que poderia estar no pesadelo de qualquer pessoa com o intuito de chacoalhar qualquer sanidade.
E não é exagero enxergar essa trindade, já que é Tilda Swinton que está na ponta de cada uma delas. Em uma delas, a atriz interpreta Madame Blanc, professora da escola de dança e que, aos poucos, vai criando essa ligação profunda com a protagonista enquanto a acompanha nessa jornada final onde sua obsessão deve ser colocada à prova. Na segunda personagem, deformadas, pútrida e maléfica, Swinton encarna a própria Helena Markos, criadora da companhia e que existe nas catacumbas do prédio esperando pela energia dessas jovens na busca pela juventude eterna em sacrifício para Mater Suspiriorum.
E se isso soou como um spoiler para você, talvez seja seu momento de entender que, se não sabe ainda do que se trata Suspiria, seria melhor fugir do filme, já que ele não é um drama sobre uma dançarina, mas sim um terror sobre um grupo de bruxas.
Voltando ao que interessa, na terceira vertente dessa história, Swinton, carregada de maquiagem, ainda interpreta o psicanalista Dr. Klemperer, ponto de partida do filme, já que é ele quem recebe em seu consultório, Patrícia (Chloe Grace Moretz), desnorteada por uma teoria de conspiração que a leva exatamente para o parágrafo anterior. Diante do desaparecimento de Patrícia, é Klemperer quem, em uma jornada solitária, sai em busca da jovem, quase como um esforço para se redimir de um pecado do passado.
Fica aqui a curiosidade ainda de Dr. Klemperer ter sido, na verdade, interpretado por um fictício Lutz Ebersdof, uma mentira que está tanto nos créditos oficiais, quanto durante as filmagens, já que ninguém do elenco sabia que, por baixo da maquiagem, estava Swinton.
Por isso tudo, é fácil imaginar que o trabalho dela em qualquer um dos três papeis é impressionante (assim como em quase tudo que ela faz), empregando uma força e uma sensibilidade, principalmente a Blanc (que não está recoberta de maquiagem), que faz com que seu olhar seja suficiente para grande parte de seu esforço interpretativo.
Essa força também aparece no resto do elenco. Ainda que menos impressionante, todas as atrizes conseguem ser firmes e eficientes, sejam nos momentos mais violentos, seja diante dos olhares misteriosos e significados escondidos por trás das ações e diálogos que parecem jogados em uma aparente normalidade coloquial que se choca com o terror explícito.
Um terror que impressiona no visual e principalmente no sensorial, as sequências de sonhos são um soco no estômago, e o final é um balé de sangue, mortes e mais um pouco de sangue, daqueles que o espectador ainda irá se lembrar por um tempo. Mas chegar até tudo isso é um esforço enorme e dispendioso.
Por mais que o roteiro de David Kajganish cumpra esse compromisso de contar uma história nova e que, ao mesmo tempo, vai se montando como um quebra-cabeça de sensações e mistérios recortados do dia-a-dia dessa companhia de dança, tudo parece apontar para uma resolução muito mais complexa e barroca do que ela realmente é. A pretensão de Guadagnino de criar quase um épico de terror é gigantescamente maior do que seu resultado.
Enquanto encara a dança como um ritual que está sempre entre o sagrado e o profano, fazendo com que a beleza dos corpos em movimento pareça estar despertando essa maldade subterrânea (na verdade serve de preparação para o simulacro), Suspiria é uma experiência única, mas quanto mais se aproxima desse terror iminente, mais parece não ter a profundidade necessária para fazer mais do que impressionar. Como se buscasse um significado em cada ação, sem perceber que só o incômodo já seria suficiente para carregar o espectador por esse pesadelo.
O resultado disso é uma busca muito maior do que deveria por símbolos, significados e metáforas. Elas estão lá e te levam para esse final surpreendente, mas muita coisa fica pelo caminho. Gestos, notícias históricas, impressões e diálogos são deixados de lado e parecem estar lá apenas como um truque de mágica frágil fazendo com que o espectador olhe para o outro lado.
De qualquer jeito, essa pretensão, ao mesmo tempo em que chateia e deixa o filme sonolento em muitas partes, empurra Suspiria para um patamar mais alto, onde tudo pode ser desvendado (mesmo que a resposta não seja tão importante) e sobreviva além do final. Poderoso, misterioso e único. Que carrega consigo lágrimas, suspiros e escuridão. Lachrymarum, Suspiriorum e Tenebrarum.
“Suspiria” (Ita/EUA), escrito por David Kajganich, dirigido por Luca Guadagnino, com Dakota Johnson, Chloe Grace Moretz, Malgorzata Bela, Angela Winkler, Alek Wek, Mia Goth, Jessica Harper e Lutz Ebersdorf.