Durante a cena de abertura de Tempo de Guerra, um pelotão de jovens soldados se espreme diante de uma pequena TV para assistir ao clipe de “Call on Me”. Enquanto um monte de mulheres em roupas de ginástica com jeitão de anos 80 “dançam” na tela, a câmera de Alex Garland, cirurgicamente, vai mostrando a reação de alguns daqueles jovens. Muitas caras conhecidas de uma geração recente de atores, o que é ótimo para o filme, mas mais do que isso, muita gente que está prestes a carregar os espectadores para o olho de uma batalha sem vencedores.
O ano é 2006 e a música alta dá lugar ao mais pesado silêncio possível das ruas de Ramadi, no Iraque. A missão desse batalhão envolve o reconhecimento de um ponto que parece ser o quartel-general de “soldados iraquianos”. As aspas vêm com a impressão de que aquelas pessoas são muito mais cidadãos lutando por seu país do que gente preparada para a guerra.
Isso se comprova mais ainda com o plano dos soldados americanos de invadir uma casa aleatória e fazer essas famílias de refém enquanto cumprem sua missão de reconhecimento. Tudo isso e o que vem depois é baseado nas memórias dessas pessoas que estavam lá, principalmente na ideia de Ray Mendoza, que aparece também como co-roteirista e co-diretor junto com Alex Garland. O nível de precisão e verdade disso é imprescindível para fazer de Tempo de Guerra uma das experiências mais viscerais do ano.
Tudo no filme foi meticulosamente construído através de, no mínimo, duas recordações de soldados diferentes, então nada de momentos de heroísmo fútil ou ideias estapafúrdias, apenas a cruel, cru e dolorida verdade. Pelo menos é o que parece e o que Garland faz questão de construir junto com a direção de fotografia de David J. Thompson, que já tinha alcançado resultado semelhante nas poucas e marcantes cenas de batalhas em Guerra Civil, também de Garland.
A ideia é construir um filme que retrata esses momentos quase em tempo integral, portanto, o espectador estará nessa casa com esses soldados enquanto eles cuidam da missão de reconhecimento como se nada estivesse acontecendo. Um tédio extremamente preciso onde Garland (e Mendoza) olham nos olhos desses soldados ainda enquanto indivíduos que se diferenciam de modo claro com seus jeitos, piadas, apelidos e funções. A carta na manga de Tempo de Guerra é o espectador mais experiente saber que aquilo será interrompido pelo caos. Esperar esse primeiro tiro (ou explosão) é insuportavelmente tenso e colocará todos sentados nas beiradas de suas poltronas.
O que vem depois disso ficou conhecido como uma das maiores batalhas do conflito no Iraque, com mais ou menos 400 iraquianos atacando esses (mais ou menos) 30 soldados americanos. O filme de Garland e Mendoza foca nesse grupo inicial de meia dúzia de SEALs (onde Mendoza estava) e acompanha, além da tentativa frustrada de extração, o desespero tático de ficarem “ilhados” naquela casa tendo que lidar com feridos e sem reforços. A tranquilidade do primeiro momento se torna um martírio em tempo real desses soldados e o espectador estará junto deles.

A câmera precisa de Thompson se junta com os soldados. O desenho de som substitui a música pelo mundo e manipula o silêncio e a sensação de surdez das bombas, tiros e tensões em geral com a mistura de gritos, ordens e desespero. Tudo misturado com personagens perdidos pela surpresa da situação enquanto tentam se organizar e alcançar a única possibilidade que eles tem de sobrevivência. Garland e Mendoza ditam esse ritmo com uma câmera que sabe encontrar a calma das palavras e o desespero tremido da batalha. Um nível de imersão que estabelece o filme como uma experiência única dentro do gênero. Um filme de guerra onde os espectadores estão dentro do conflito de modo desesperador, já que todo mundo ali parece pronto para ser vítima dessa guerra, sem você saber direito para onde olhar ou se preocupar.
E por mais que o objetivo de Mendoza e Garland seja celebrar o esforço desses soldados e olhá-los como heróis dentro de uma situação onde eles precisam sobreviver, em nenhum momento eles tomam partido de ninguém até o final. É lógico que você está acompanhando os soldados, mas nunca olhando para eles como a epítome do “macho yankee de filme de ação”, pelo contrário, permanecem próximos o bastante deles para sentir com eles suas inseguranças. Do outro lado, também não vitimiza ou banaliza os iraquianos em sua “jihaad”, são apenas figuras anônimas atirando contra um inimigo que quase não entendem. Tempo de Guerra tem apenas uma vítima: a família.
Antes da cena durante os créditos finais mostrando a equipe das filmagens interagindo com alguns veteranos do acontecido e do cuidado em criar essa realidade impecável, após os soldados americanos conseguirem ser resgatados por dois tanques, Garland (e Mendoza) parecem esquecer a câmera ligada para enxergar aquele mundo. Eles observam sair de dentro das casas da rua dezenas de “soldados iraquianos” olhando para os lados como se não soubessem mais o que fazer, como se não entendessem se alguém ali ganhou ou perdeu. Retrocedendo um pouco mais, a família que ficou de refém o tempo inteiro, enquanto é liberada pelos americanos grita “por quê?” em um inglês claro, mas sem respostas, apenas sua casa destruída por uma guerra onde nenhum dos lados conseguiu entender e apenas seguirão para o próximo conflito.
Garland não termina o filme com isso por acaso, mas sim para lembrar que aqueles soldados ou “soldados cidadãos” são apenas uma ferramenta que praticamente não entende o que está acontecendo. Uma metralhadora não entende a razão de alguém estar puxando seu gatilho, ela apenas cospe os projéteis. Garland sabe disso e (assim como fez em Guerra Civil) discute o quanto essas pessoas não são o começo, mas sim o fim, aquele lugar onde as decisões não tem rosto e o resultado não afeta quem está realmente por trás de qualquer um dos lados.
A sensibilidade de Garland e Mendoza não homenageia o heroísmo, mas sim a humanidade e a dor dessas pessoas, sem encontrar um lado confortável para glorificar, muito pelo contrário, e o espectador estará perto o suficiente desses soldados para sofrer com eles e entender o quanto sobreviver é o único objetivo, muito mais do que “ganhar” ou eliminar qualquer inimigo. Até porque, seus verdadeiros inimigos estão bem longe das balas.
“Warfare” (EUA, 2025); escrito e dirigido por Alex Garland e Ray Mendoza; com Joseph Quinn, D´Pharaoh Woon-A-Tai, Cosmo Jarvis, Aaron Mackenzie, Alex Brockdorff, Finn Bennett, Evan Holtzman, Michael Gandolfini, Joe Macaulay, Laurie Duncan, Aaron Deakins, Henrique Zaga, Will Poulter, Noah Centineo e Charles Melton.