O cinema sempre terá um lugar especial para pequenas histórias com corações enormes. Um lugar onde as lágrimas do espectador podem vir junto com um quentinho no peito que vale o suficiente para passar por cima de certos problemas de filmes como Tesouro.
Como Tesouro, esse tipo de filme conta com histórias simples e objetivas, que parecem ser menores do que a delicadeza com que são trabalhadas, mas que sempre crescem de um jeito que fazem o espectador querer invadir a tela do cinema e abraçar aquelas pessoas. Salvá-las de suas dores e enxugar suas lágrimas.
Tesouro é escrito por John Quester e Lily Brett em parceria com a diretora alemã Julia von Heinz e baseado na história real dessa jornalista americana, Ruth (Lena Dunham), que viaja para a Polônia com seu pai, Edek (Stephen Fry), para conhecer um pouco mais de sua herança no país, já que seus pais foram sobreviventes de Auschwitz.
Ela, perdida no presente (1991) querendo descobrir mais sobre o lugar onde seus pais cresceram e acabaram sobrevivendo aos terrores do Holocausto. Ele, preocupado com a filha, querendo fazer de tudo para que ela não sofra aquilo que ele sofreu e nem imagine isso. Mas a complexidade de ambos é tão grande que o filme transforma esse “road movie” em uma espécie de redenção e luto para ambos.
Como se nenhum dos dois conseguissem viver com aquelas memórias ou falta de memórias que têm. Ainda que o roteiro vez ou outra faça isso de forma meio didática e exagerada, como quando ela narra os livros sobre o Holocausto que está lendo ou no modo como Edek parece simplesmente não entender as vontades da filha e seus problemas, o que emerge disso é uma segunda metade de filme potente e que consegue colar bem todas questões que vai “abrindo”.
Aos poucos Edek vai se deixando levar pelas nuances de um personagem que é falho em seu distanciamento da filha, que não tenta ultrapassar a barreira que ela cria para si própria como defesa de um munda que ela não acha que se encaixa. Edek diminui certas frustrações da filha sem perceber que isso é um jeito de ele mesmo se blindar da dor de estar ali. Ruth não percebe isso e os dois permanecem separados por toda viagem.
Só lá na frente, quando essas barreiras caem é que se sentam ambos no banco de trás do taxista que os acompanha durante todo caminho. A direção de Julia von Heinz e clara dessa maneira. Objetiva naquilo que quer mostra e, principalmente, sabe que o verdadeiro tesouro que tem em mãos é a sua dupla de protagonistas, por isso entrega o filme para eles.
Dunham entende sua personagem com uma delicadeza incrível. Coberta pelos casacos parece se esconder do mundo. Muito mais despida em seu quarto, transita entre a insatisfação com o próprio corpo e essa quase mutilação de tatuar sua perna e sua alma com as dores dos seus pais que, ela própria, não sentiu. Como se precisasse daquilo para se aproximar. Quase como se sentisse culpada por não ter aquelas aflições. Dunham transita nessa complexidade com emoção e carinho pela personagem, é fácil entender o quanto ela sofre ao ver o pai afastado, mas também foge desse carinho.
Já Fry é de uma experiência tão enorme que faz com seu personagem tome de assalto o filme para ele. Do começo meio atrapalhado e desligado, até essa construção de um homem que tem um coração tão grande que não consegue esquecer as cicatrizes que o marcaram. Sua felicidade e desleixo se transformam em uma doçura e fragilidade quando dá de frente com seu passado real, não aquele que sua filha queria ver. Seu lugar de dor não está na chegada do trem eu Aushwitz dita para os turistas e sim naquela real, pouco metros distante e esquecida pelo tempo. E Fry faz isso soar quase com uma liberdade que seu personagem precisa ter.
Sentado no quarto, abraçado com o casaco do pai, o ator deixar claro a razão de ser um dos nomes mais importantes de sua geração de atores. Um daqueles exemplos de uma estrela que poderia estar em qualquer lugar, mas que, assim como Dunham, identificam o quanto é importante valorizar esse tipo de filme pequeno, mas que é muito maior do que seu orçamento. Filmes com o coração no lugar exato e que ganham ainda mais com os trabalhos dessa dupla incrível.
Tesouro merece ser visto pela história e pelas suas emoções, assim como pela presença de Lena Dunham e Stephen Fry, o que deveria ser a razão suficiente para qualquer um ver qualquer coisa que esses dois estejam envolvidos.
“Treasure” (Ale/Fra/Pol/Bel/Hun/EUA, 2024); escrito por Julia von Heinz, John Quester e Lily Brett; dirigido por Julia von Heinz; com Lena Dunham, Stephen Fry e Zbigniew Zamachowsk