Dezessete anos e 35 filmes (e algumas séries) depois, a Marvel ainda têm fôlego para fazer um filme que tenta a todo custo ser diferente daquilo que todo mundo estava esperando. Quem não admirar isso ou rejeitar essa ideia por não ser aquele filme de super-heróis que estavam esperando, problema dessas pessoas. Ou melhor, azar delas, já que Thunderbolts* não parece muito preocupado em cumprir as suas expectativas.
Até porque, Thunderbolts* é justamento sobre expectativas e como a gente precisa lidar com elas sem perceber o quanto essa construção da nossa mente está muito mais ligada às pressões da sociedade, do que realmente daquilo que a gente deveria racionalizar. De como a potência das nossas mentes é muito mais forte do que um “pensamento positivo”, e é preciso lidar com isso.
Sim, o filme de Jake Schreir é sobre um monte de transtornos mentais, dos mais simples até os mais complexos.
E em Thunderbolts*, quando a (nova) Viúva Negra, Yelena Belova (Florence Pugh), cita do alto de um prédio que “há algo acontecendo com ela… um vazio… um vácuo” antes de pular dele e deixar claro que esconde esse incômodo e essa dor com um trabalho atrás do outro, é impossível entender qualquer outra coisa.
Yelena é a ponta desse iceberg de personagens que estão à margem do luxo do MCU. Gente que não é boa o suficiente para estar nos filmes mais famosos, mas que continuam cumprindo seus trabalhos pelos bastidores daquele mundo. Até que todos cruzam o caminho de Valentina Allegra de Fontaine (Julia Louis-Dreyfus), que já tinha aparecido em várias oportunidades, justamente, “convocando” esses personagens. Mas agora ela tem um objetivo maior e acaba criando uma armadilha para todos eles e também parar elimina todas outas provas que colocam sua função na CIA em perigo.
Yelena então se junta a John Walker (Wyatt Russell), que “foi o Capitão América por dois segundos” (na série Falcão e o Soldado Invernal), a Fantasma (Hannah John-Kamen) e a Treinadora (Olga Kurylenko), a primeira saída do filme do Homem-Formiga e a segunda do próprio Viúva Negra. O grupo ainda encontra com o Guardião Vermelho (David Harbour) e com o próprio Soldado Invernal (Sebastian Stan) para enfrentar um “super” criado por de Fontaine para substituir os Vingadores, mas que acaba perdendo o controle e resolve matar todo mundo ao seu redor. É claro, isso se os Thuderbolts deixarem (e se mantiverem esse nome!).
Mas falando sério, nem eles acreditam muito neles, e esse é talvez o ponto central de Thunderbolts* e maior Ás na manga da Marvel para fazer desse um filme único dentro de sua filmografia. É lógico que existe uma certa pasteurização imposta por Kevin Feige e pela marca em seus filmes, principalmente para que eles se encaixem dentro das expectativas naturais do seu público. Um herói que irá salvar tudo, um vilão que é mais forte que ele, uma trama que ensine o protagonista a crescer o suficiente até ficar mais forte que o vilão, um coadjuvante engraçado e que sirva de mola para o herói ter grande ideais, tudo aquilo que você já sabe. Mas quando isso não acontece (para o bem!), o resultado é sempre um destaque para alguns e uma decepção para quem quer esse formato da frase anterior.

Quando o MCU se permite escrever em tons de cinza, o resultado é sempre arrasador. Pantera Negra é sobre muito mais que um legado, Guerra Civil deixa o vilão vencer e quebrar os heróis, Eternos é muito mais sobre a responsabilidade que vem com os grande poder do que qualquer filme do Homem-Aranha, Thunderbolts* é sobre o maior inimigo de qualquer ser humano (seja super ou não): sua mente.
O grupo de “anti-heróis” alvo de de Fontaine encontra com Bob (Lewis Pullman), um cara sem qualquer tipo de autoestima ou saúde mental que depois se descobre ser o tal experimento da vilã para recriar uma espécie de herói. O problema é que em seu âmago, seus traumas e dores trazem à tona uma personalidade sua que é completamente desprovida de qualquer empatia ou culpa. O resultado é um super-herói que rapidamente se deixa levar por esse lado sombrio, esse vácuo. Parece exagerado e quase caricato, mas é tremendamente bem estruturado pelo roteiro de Eric Person e Joanna Calo. A fórmula do gênero está lá, mas de um jeito mais, digamos assim: “com o coração no lugar”. E isso passa por seus personagens.
Yelena e Alexei (Guardião Vermelho) são claramente dois lados dessa mesma moeda que caminham por aspectos de uma depressão de modos diferentes, mas que conseguem se encontrar no meio do caminho. Ele não entende ela e vice-versa. Ele continua em busca de um reconhecimento de seus feitos, mesmo esquecido. Ela precisa se reconhecer, entender que existe uma razão para estar lá, afundando suas incertezas e dores com trabalho. De modos divergentes, ambos buscam dias anteriores onde não precisavam pensar sobre isso. Ele afunda suas inseguranças com seu jeito bonachão e bem-humorado, ela sobre sua irritação constante.
Walker (ex-Capitão América) não consegue lidar com seus fantasmas do passado, mas supera isso com violência e intransigência, afinal é um soldado e está ali para cumprir ordens. Três personagens que estão no cerne de Thunderbolts* e estão bem longe de serem aquele tipo de herói que o MCU se sente confortável. Junte a eles o Bob transformado em Sentinela e posteriormente em Vácuo e o que o espectador tem é um filme que lida com depressão, bipolaridade e um monte de dores existências da vida com muita porradaria. Literalmente falando.
O finalzinho do filme chega a mergulhar dentro do subconsciente de um dos personagens para ele arrebentar de socos seu lado mais sombrio enquanto esse se deixa apanhar até que toda raiva tome conte dele. E se isso não é uma metáfora suficiente par você, tudo bem, talvez você só queira o mesmo de sempre, mas garanto que um cinema preponderante e que tenha um futuro real, não sobreviver com “o mesmo de sempre”.
Thunderbolts* é novo e cheio de personalidade. A direção de Jake Schreier entende que tem em mãos esse lado “internalizado” dos personagens e de suas motivações, então dá espaço para isso enquanto não desperdiça nenhuma cena de ação, todas muito bem coreografadas e com uma câmera que valoriza cada um desses momentos. E se dá espaço para os personagens interagirem, é porque sabe que precisa deles e de suas personalidades únicas para fazer o filme funcionar até o final, principalmente, pois ele se resolve com muito mais emoção e coração do que com socos e pontapés. E quanto mais próximo o espectador estiver dos personagens, mais fácil disso acontecer. O que acontece!
Até da calada Fantasma você simpatiza, tanto pela eficiência de suas ações, quanto pela impressão de que ela, mesmo um pouco mais bem resolvida, some não só pelo seu poder, mas também por não saber lidar com o mundo ao seu redor. Schreier também sabe que a presença do Soldado Invernal poderia roubar a atenção de todos, então opta por colocá-lo em um lugar de “herói clássico e chatinho” que precisa aprender a conviver com esse grupo meio desvairado e entender que também há valor naqueles que ele aprendeu a “enfrentar”, já que seu passado é como uma mancha em sua “nova vida”.
Essa dinâmica entre os heróis é perfeita, assim como sua ligação com o “vilão” Sentinela é tão forte que mostra o quanto Thunderbolts* não é uma trama pragmática sobre o bem contra o mal, mas sim sobre o quanto esses personagens não são só uma coisa ou outra e merecem ser entendidos. Não basta salvar Manhattan para se tornar os Vingadores, é preciso salvar seus amigos e lhes dar a segunda chance que merecem. Uma ideia que vai além do óbvio e deixa claro mais uma vez que mais de trinta filmes e séries depois, a Marvel continua se permitindo ir além daquilo que o fã chato e ranzinza espera, se permitindo entregar algo que não se deixa ser só um filme sobre super-heróis, mas também um filme sobre as pessoas por baixo dos capacetes, uniformes e escudos.
“Thunderbolts*” (EUA, 2025); escrito por Eric Pearson e Joanna Calo; dirigido por Jake Schreier; com Florence Pugh, Sebastian Stan, Julia Louis-Dreyfus, Lewis Pullman, David Harbour, Wyatt Russell, Hannah John-Kamen, Olga Kutylenko e Geraldine Viswanathan.