Tenho o prazer desta vez de poder falar sobre um filme nacional que não dependeu de quaisquer incentivos públicos e produzido de forma completamente independente. E se fazer arte é um ato político, a produção de Todo Clichê do Amor diz muito mais sobre a época que vivemos do que qualquer manifestação na Paulista.
Com toda a originalidade possível que um projeto desses implica, a produção de Daniel Gaggini e a direção, roteiro e atuação de Rafael Primot elencam três protagonistas mulheres em torno de recortes exóticos do dia-a-dia dos relacionamentos amorosos. O objetivo é brincar com os clichês desses filmes de amor ao mesmo tempo que se faz um. Temos uma prostituta que, ao mesmo tempo que cuida de um cliente de sadomasoquismo, conversa com o marido – ator pornô – a respeito de seu desejo imediato de ter um filho. Enquanto isso, madastra e enteada trocam farpas sobre a vida ao terem que se encontrar no o enterro do pai/marido. E para fechar a trilogia a paquera inocente entre dois jovens que, diz-se, vivem mundos e destinos distintos, mas que no fundo… no fundo sempre há um clichê para juntá-los.
Este filme brinca com o sexo e o seu orgasmo é o clichê romântico. E orgasmos aqui nunca são alcançados, quase como uma metáfora sobre a definição do amor. Ou como a comédia no filme, pois apesar de estarmos presenciando o humor em momentos pontuais de histórias que arriscam ser leves, todo o texto existencialista que se finge de cotidiano não nos deixa desvencilhar do drama inerente de cada história. É como se a profundidade que Rafael Primot alcança com essas histórias sabotasse sua própria ideia de humor atrelada ao drama.
Isso quer dizer que o material apresentado neste filme, apesar de emular as narrativas frustrantes de “globochanchadas” ou até de romances piegas, acaba soando imensamente mais complexo, o que o torna fascinante por si só. Há vários momentos em que a força da história não reside nela mesma, mas na auto-análise que o filme nos força a fazer, desconstruindo sua narrativa em prol da observação aguçada do que torna um clichê do amor uma matéria-prima tão essencial para a produção de histórias.
Tome, por exemplo, as narrações em off. Elas começam com os homens, mas dizem muito mais sobre as mulheres, objetos de desejo. E elas não são desejadas como objetos, mas como conceitos de seres humanos. E apesar de ser muito difícil enxergar um ser humanos neste filme feito de momentos, não é muito difícil perceber como uma atendente de hamburgueria que aprende língua de sinais para ajudar jovens carentes já é um pouco mais que um entregador aleatório “como qualquer outro que você vê na cidade”, como ele mesmo se define.
E esse é um dos elementos dos filmes românticos. Nunca é sobre as pessoas, mas esse sentimento que, como um vapor, paira no ar, e que ao tentar definir ele se esvai. É sobre comunicação, também. Temos aqui uma abertura para absurdos como nunca antes visto, já que o próprio filme em seu título (e na fonte dos créditos iniciais do seu título) já reverencia o lugar-comum, então nada mais justo que tentar fugir do comum o exarcebando. É apenas através dessa forma que é concebível um casal onde ela não enxerga e ele não tem paladar. Ambos se complementam de uma das maneiras mais estranhas e românticas possíveis. E esse casal simboliza que Rafael não está brincando em serviço.
E apesar disto, mais um símbolos do lugar-comum, as histórias que se entrelaçam, é visto aqui como ferramenta de entretenimento. No começo acompanhamos a conversa entre madastra e enteada como a realidade número um, mas conforme a história avança dicas importantes para as outras histórias que se iniciam serão lembradas nestas, ativando a isca plantada em nós, espectadores, já acostumados a tentar desvendar onde cada história se encaixa na outra. Pode ser uma ficção dentro de outra no melhor estilo Mundo de Sofia, ou pode ser algo mais poético como as vidas que se cruzam em Um Beijo Roubado. O mais importante aqui é que não nos importamos (muito) em desvendar o processo, mas ele fica no nosso inconsciente, o que aumenta nossa atenção; cada detalhe das historietas poderá ser importante para montar este quebra-cabeças, incluindo as formas de enxergar o amor de cada personagem.
E por falar em personagens, não é muito difícil se sentir apaixonado ao admirar o sorriso aberto de Débora Falabella, a atendente da lanchonete que poderia ser uma versão resumida da já-resumida atendente da primeira história do longa de Hsiao-Hsien Hou (Three Times). Vemos seu sorriso ao vivo sob os olhos do atendente “humildão” que sabe se expressar melhor do que imaginaríamos, mas mesmo a foto do sorriso de Falabella no quadro de funcionária do mês já seria suficiente para inspirar suspiros colegiais. E o fato dela manter uma história com tão pouco texto a ser dito é o que torna seu sorriso mais poderoso. Ela é falante de libras, a língua de surdo-mudos, e ela brilha em uma cena inusitada onde sua fala é dita em libras. Não sabemos na hora o que é dito, e isso é importante para entendermos a força que a atriz possui naquele singelo momento.
Já muito mais difícil é a tarefa de Marjorie Estiano, que não se encaixa em nenhum dos quesitos do que nós homens chamamos de “mulherão”, mas que tem que pcriar uma prostituta de luxo com um certo ar misto entre familiaridade e incompetência. Ela consegue deixar a marca de uma garota que parece ter feito isso a vida toda, ou trata sua profissão como uma banalidade. E aqui o humor funciona melhor, não nas falas, mas na situação que a fala denota. Ela liga no meio do programa fazendo uma lista de mercearia, e o tom que ela emprega para citar os usos do chantily demonstra mais a segurança de Estiano do que seu uso do famigerado e desgastado chicote de BDSM.
Enquanto isso o dueto teatral entre Clarissa Kiste e Maria Luísa Mendonça funciona justamente por estar inserido em um filme teatral. As falas de Clarissa são ditas em um tom levemente ficcional, o que lembra o estereótipo sem largar a personagem. E Maria Luísa entrega uma mulher à beira de um ataque de nervos sem perceber que ela evapora diante da postura firme, pseudo-melancólica e com um quê de mimada de Clarissa. Clarissa faz uma surda que usa aparelho, mas este é um detalhe que parece nos lembrar mais da importância da inclusão de deficientes em filmes do que um aspecto do personagem, estereótipo ou não. Ele é usado em momento climático, mas não precisaria. Se trata daqueles elementos de cena que se pensa mais sobre ele do que na verdade mereceria.
Além de atuar, Rafael Primot dirige aqui com absoluta tranquilidade e uma certa petulância, que pode ou não fazer parte do jogo dos clichês. Apostando nas cenas mais fechadas ele mantém o orçamento sob controle e nos traz mais para a intimidade daquelas pessoas.
Foram sete dias de filmagens com pouquíssimo tempo para ensaios que realizaram um pequeno milagre que merece ser visto na tela de cinema. Mas também há algo aqui querendo ser dito sobre o processo de “amorização” do cinema, e pode ser algo que não havia sido dito antes. Ou, sei lá, talvez nós estivéssemos entretidos demais nos velhos e eficientes clichês do gênero.
“Todo Clichê do Amor” (Bra, 2018), escrito e dirigido por Rafael Primot, com Maria Luísa Mendonça, Débora Falabella, Marjorie Estiano, Rafael Primot, Gilda Nomacce.