[dropcap]E[/dropcap]xistia uma aura em mim que me dizia que o ator Paulo José era uma grande persona, além de uma espécie de “versão mais velha do Seu Jorge”, já que é uma figura que parece presente em todos os momentos importantes da cinematografia nacional (e até mundial). Se você também tem este grande apreço por este grande ator, não indico assistir a Todos os Paulos do Mundo, uma pseudo-homenagem inglória que perde em ritmo a mesma quantidade do que perde em brilho sobre quem foi, é e será Paulo José em nossas memórias.
O mais trágico disso tudo é que o filme é narrado na maioria do tempo pelo próprio Paulo José, uma espécie de convidado especial que atravessa sua cinematografia em uma série de colagens criadas pelos diretores Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro, que assinam o roteiro do seu aparente brilhantismo em ligar cenas de diferentes filmes que o ator participou por temas crus, vazios, como o disparo de uma arma, uma declaração de amor, um momento de loucura. As falas de Paulo em todos os filmes se misturam em décadas e narrativa, se tornam um marasmo tentar acompanhar o significado de cada uma dessas falas, que ouvidas dessa forma soam obscuras demais.
“O ator é o significante, e é o filme que dará o significado para seu papel.” Aqui a dupla de diretores não entrega o significado nem para o significante da pergunta “quem é Paulo José?”, preferindo em vez disso deixar o mistério fluir por infindáveis 80 minutos. Sabe quando estamos assistindo a um filme ruim e o protagonista olha para a câmera e diz algumas coisas sem sentido, mas que soam importantes pela maneira dele falar? “Todos os Paulos…” soa exatamente assim, com a diferença que esse momento se repete indefinidamente como um eco que nunca diminui o volume.
E este eco se transforma em diferentes vozes de atores e atrizes que já trabalharam com o protagonista. O elenco secundário de narradores vai desde a figurinha repetida de Selton Mello (que parece também repetir a façanha de Paulo José em usar a mesma cadência sempre em suas falas) até os que seriam verdadeiras pequenas pérolas, como Fernanda Montenegro e Joana Fomm. Esse pessoal, essa panelinha, faz parte de uma outra arte que não cabe ao cinema nacional. Eles fazem parte do teatro, e estão homenageando a arte errada.
Havia um experimento no teatro que Paulo retrata, chamado de Arena. Neste lugar uma trupe de atores entregava a coisa real, não-maniqueísta, de ser seus personagens, e se entregarem ao ato. A distância do público era mínima e o efeito máximo. O resultado era a essência do que era atuar no seu sentido mais íntimo ou legítimo. Paulo José diz que nunca construiu um personagem, pois ele simplesmente o era quando estava diante da câmera. O trabalho de Rodrigo e Gustavo o transforma em um atuador de Paulos Josés, infinitos, pairando sobre a tela, em um delírio Quero-ser-John-Malkovichiano que acaba virando um pesadelo.
Há diferentes fontes de imagens neste filme em um trabalho admirável de pesquisa e arquivamento histórico. Fora os mais conhecidos Macunaíma, O Padre e a Moça, Todas as Mulheres do Mundo, O Homem Nu, Policarpo Quaresma e tantos outros, temos imagens de trabalhos menores e marginais que teriam se perdido facilmente. Aqui o trabalho do filme é legítimo e digno de aplausos. É verdade, o seu uso poderia ter sido muito mais frutífero caso não estivéssemos acompanhando uma sequência caótica e desfigurada de momentos marcantes da filmografia de um ator. Ainda assim, o resgate da memória de um povo através de sua arte é uma missão nobre e respeitável.
Porém, se para isso teremos que burocratizar o cinema em documentários que tem por finalidade catalogar o acervo nacional financiado pela Ancine e realizado da maneira mais insossa possível, seria melhor queimarmos tudo e dar espaço para o novo, pois o velho é reconhecidamente valioso demais para ser revisto e assim estragar nossas tenras memórias de algo que parecia muito maior do que aqui é visto. E esta minha última frase está muito mais coerente do que a maioria das falas de Todos os Paulos do Mundo, o que é a lástima de sintetizar o impossível: o próprio ato de atuar.
“Todos Os Paulos Do Mundo” (Bra, 2017), escrito e dirigido por Rodrigo de Oliveira, Gustavo Ribeiro, com Paulo José, Selton Mello, Joana Fomm, Fernanda Montenegro.