Todo mundo ama do David O. Russel. Há um tempo atrás ninguém gostava muito dele, mas hoje gostam. E nem o interessante Três Reis de 1999 fez com que sua moral melhorasse (reza a lenda que uma discussão com o astro George Clooney foi umas das razões). Mas fim, ninguém gostava de Russel, até que emplacou O Vencedor em um monte de categorias do Oscar, depois O Lado Bom da Vida (em quase todas) e agora Trapaça, que não chega a ser tão interessante quanto os dois, mas como todo mundo gosta do David O. Russel…
E essa paixão momentânea é resultado muito mais de uma mudança como diretor do que como pessoa (aquelas mesmas lendas dizem que ele se tornou mais humilde e harmonioso com suas estrelas). O Russel de Três Reis ainda estava em busca de si mesmo. O de hoje já descobriu que o caminho das pedras é muito menos personalidade e muito mais objetividade. Com isso, mais ainda do que nunca em sua filmografia, Russel aposta no cavalo que é a barbada do derby.
Livremente inspirado em fatos reais (o roteiro é escrito pelo próprio Russel com Eric Warren Singer) o filme conta então a história desse casal de golpistas (Christian Bale e Amy Adams) que acabam caindo em um flagrante de um agente do FBI (Bradley Cooper) e são obrigados então a ajudá-lo em uma investigação que poderá levar um monte de políticos importantes para a cadeia. Tudo isso em pleno final dos divertidos e exagerados anos 70, com muitos decotes, penteados cheios de laquê, uma trilha sonora incrível e, no final, até alguns mafiosos para completar o cenário (com direito até a Robert De Niro). Além, é claro, da participação de Jennifer Lawrence como a esposa bipolar de Bale.
E a sensação de “apostar no cavalo vencedor” é tão obvia que Russel simplesmente coloca nos papeis principais seus quatro últimos protagonistas de seus dois filmes. Todos quatro indicados ao Oscar e dois deles ainda saindo vencedores da premiação (Bale e Lawrence). O resultado é um filme onde todos são extremamente conhecidos do público, o que faz ser fácil demais se identificar com todos. O que é ótimo para Cooper, que nem faz muito esforço para compor seu personagem, mas sai do filme parecendo ter feito muito mais do que realmente fez.
Isso, já que além de uma direção de arte divertidamente inventiva, que consegue caracterizar e dar personalidade para todos os protagonistas e até para os menores dos coadjuvantes (até a família do prefeito vivido por Jeremy Renner é cuidadosamente criada), Cooper e todos outros estão ao lado dos sensacionais Bale, Adams e Lawrence. E Russel sabe disso.
Cada um deles tem seu momento para ganhar não só a indicação ao Oscar e qualquer outro premio, como para impulsionar o filme. E não que isso seja um problema (nao é!), mas a impressão que dá é de um diretor conformado com subterfúgios óbvios e à vontade demais com o lugar comum (e totalmente diferente da coragem com que dirigiu seus dois últimos filmes). É lógico que não existe modo melhor do que começar o filme desconstruindo o personagem de Bale (talvez criando uma espécie de “anti-Batman), barrigudo, careca e ridiculamente cobrindo a calvice com um “combover” vergonhoso. Russel então aponta sua câmera e convida todos a torcer por esse cara, esse ser humano e não um herói, que carrega o peso de toda situação nas costas. Mas “toda essa situação” nem é lá tão pesada assim.
É lógico que o filme empolga em um ou outro momento, mas se mostra muito mais eficiente diante de seus personagens e situações extra-trama. O triangulo amoroso que se cria entre os dois (Bale e Adams, que são sim o melhor do filme) e o agente do FBI é muito melhor, e muito mais epolgante, que o resto da trama, que se dispõe a ser até meio óbvia, já que o real perigo da situação não parece empurrar todos para o final. Final esse que, como se imagina diante de toda essa pasteurização, é exatamente aquele que todos esperam, afinal os dois são golpistas, o filme se chama Trapaça (no original também) e se você achou que isso foi um spoiler, devia ir mais ao cinema.
Mas (novamente) nem por isso Trapaça é ruim. Ainda mais quando Russel é tão preciso e “limpinho” em cada uma de suas cenas, com enquadramentos, planos e contra-planos, pontos de fuga, tudo em seu lugar. E mesmo que imite demais Martin Socorsese nos flashbacks que apresentam todos envolvidos na trama (homenagem seria se fizesse uma vez, mas ele faz isso em todos os personagens, copiando movimentos de câmera, montagem, zooms… tudo muito parecido… imitado mesmo), o diretor entrega um resultado muito bem construído e que sabe perfeitamente bem o quanto pode (e consegue) deixar uma trama extremamente simples mais fácil ainda de ser (pouco) mastigada e engolida.
E tanto sabe a importância desse ritmo que, mesmo começando o filme com uma cena que se repetirá depois (e sim, você também já viu o Scorsese fazendo isso), a faz com uma que logo é ultrapassada e abre espaço para um filme linear e que se estabelece por uma série de reviravoltas. Até óbvias, mas nunca frágeis e sempre amarrando muito bem a história.
Por outro lado, tanto o roteiro quanto a direção de Russel parecem descansados demais com o material que tem em mãos. E o resultado é um filme quase pragmático, onde já que você tem que torcer para o trambiqueiro, que toma remédio para o coração e se mostra fragilizado, por que então não colocar apenas uma pessoal usando drogas durante o filme inteiro, o agente do FBI (cooper) e uma carreira de cocaína que o coloca diretamente do “lado dos vilões” (pouco antes de tentar estruprar uma personagem e agredir o próprio chefe). Assim como acompanha o personagem de Bale indo buscar sua arma e deixando-o fazer exatamente aquilo que todo mundo esperava que ele fizesse. Sem surpresas. Sem muita emoção.
E entre muitas (mas muitas mesmo!) coisas que separam O. Russel e sua clara inspiração, Martin Scorsese, está justamente isso: aquele segundo passo que o diretor de Bons Companheiros sempre dá e joga todos no cinema em um lugar completamente diferente. No caso de Russel, um que não mostra nada de tão inesperado. A Trapaça então ganha o público muito mais por deixá-los confortáveis dentro daquilo que imaginam que vai acontecer (sem nenhuma decepção, é preciso salientar), e uma imersão preciosa na época em que o filme se passa (até os créditos iniciais dos estúdios ajudam nisso), do que por algum momento memorável que pudesse fazê-lo ser inesquecível.
Enfim, Trapaça é bem humorado e divertido, mas David O. Russel daqui a um tempo será lembrado como o cara que fez O Vencedor e O Lado Bom da Vida. Aquele cara que todos continuam amando, mas que é melhor quando tenta ser ele mesmo, e não quando imita o Scorsese.
“American Hustle” (EUA, 2013), escrito por Eric Warren Singer e David O. Russel, dirigido por David O. Russel, com Christian Bale, Bradley Cooper, Amy Adams, Jeremy Renner, Jennifer Lawrence e Louis C.K..