Assim como o jazz, Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado, parece um grande improviso, mas aos poucos (assim como o jazz também!), o que surge é um tema que vai carregando cada um dos músicos para um lugar em comum. Quando menos você perceber, tudo vai fazer sentido. Tanto no documentário, quanto no jazz.
O filme de Johan Grimonprez começa quase como uma colagem de momentos de músicas com uma notícia sobre a invasão de Abbey Lincoln e Max Roach em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU após o assassinato do primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba. Esse fato se mistura ainda com questões do relacionamento da CIA com os países da África. Tudo misturado, como solos que disputam a atenção do espectador nesse primeiro momento.
Abbey Lincoln era uma famosa cantora de jazz, Max Roach era um dos bateristas mais importantes de sua geração e um dos pioneiros do bebop. Ambos eram casados à época e tinham um histórico de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Como eles chegaram lá e o que tudo isso tem a ver é um capítulo impressionante da história desse país.
Para montar essa história toda, Grimonprez, aparentemente, faz uma pesquisa absurdamente profunda de imagens de arquivo, citações e frases de documentos para entender esse cenário. O trabalho de ajudar a estruturar tudo isso é ainda de Rik Chaubet (montador) e o trabalho de ambos é realmente impressionante, como dois músicos trocando solos em uma canção. As notas, escalas e tempos são essas cenas reais. E se tudo parece começar jogado, logo chega em um lugar muito poderoso, potente e histórico.
Como o nome do filme aponta, Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado vai construindo essa teoria onde o governo dos Estados Unidos e a CIA (há quem diga que esses dois órgãos são bem separados até!) não só apoiaram todo colonialismo europeu na África durante o século 20, como influenciaram e ajudaram gente como a Bélgica a se manter no poder do Congo, por exemplo. E é essa relação que é o mote do filme.

Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado é didático, mas, ao mesmo tempo, provocativo, já que vai intercalando essa relação entre os países com declarações e atos de personalidades do jazz americano na época e outras personalidades do movimento negro que apontavam o perigo dessa ligação entre os países. Ao mesmo tempo em que vai montando essa sensação de que muitos desses mesmos artistas se afastavam dessa discussão em busca de um mundo mais pacífico. Como se acreditassem em uma boa relação entre as nações.
Tudo isso vai se misturando enquanto o filme vai explorando mais e mais essa relação entre as pessoas, países, jazz e colonialismo. Quando você menos perceber, estará vendo uma trama absolutamente exploratória onde os Estados Unidos, interessado na mineração do Congo para suas bombas, manipula todo cenário político da região enquanto usa esses jazzistas como cortina de fumaça para desviar a atenção dos olhares.
Se dizendo assim parece absurdo, o filme de Grimonprez vai te provar isso. Estruturando muito bem as questões de “soft power” dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, principalmente nas questões relacionadas ao uso do “melhor da música americana” para construir uma empatia por trás das “linhas inimigas”, e aqui é possível ler: qualquer país com relação com a União Soviética.
No meio de toda essa confusão de momentos históricos que vão se transformando em uma melodia impressionantemente surpreendente, Grimonprez ainda corta todos esses tempos com um discurso do líder soviético à época, Nikita Khrushchev. Quase como um contraponto que vai prevendo uma série de ações orquestradas pelos Estados Unidos e pela Bélgica para manter o Congo e outras partes do continente africano sob o controle direto da Europa e indireto dos americanos. E se nesse momento o filme toma um lado, é porque seria impossível fazer o contrário, ainda mais diante da trama que continua surgindo cada vez mais violenta e absurda.
Esse emaranhado de imagens, entrevistas e jazz chega então ao primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba e uma narrativa que beira a de algum thriller de espionagem enlatado, culminando então com o seu assassinato e chegando lá no começo do filme. Tudo completamente bem amarrado, nota por nota. O que parecia improviso é tão bem ensaiado e construído que assusta pela veracidade e por mostrar um retrato indignante de um período histórico que não deve nunca ser esquecido. E não vai, afinal essas mesma forças continuam manipulando e puxando as cordas do continente africado em busca de suas riquezas.
A diferença agora é que a trilha sonora de jazz para esconder todas essas barbaridades ficou para trás e tudo está muito mais jogado na nossa cara. A música muda, mas o refrão é o mesmo.
“The Sound Track of a Coup ´Etat” (EUA, 2024); escrito por Johan Grimonprez e Daan Milius; dirigido por Johan Grimonprez.