Um Doce Refúgio é uma comédia de situação que brinca um pouco com essa sensação de explorar outros horizontes na meia-idade (defina você esse período da sua vida). Levar a cabo os sonhos da infância, reviver, enfim, os bons momentos que estão em nossas memórias. Porém, ao mesmo tempo que temos esse desejo, estamos ancorados na vida real, sujeitos às complicações da vida moderna.
O herói do filme, Michel (Bruno Podalydès), trabalha com computação gráfica no meio de um bando de jovenzinhos focados em impressionar os outros. E a sua praia já não é ficar ancorado em uma vida tranquila e estabilizada. Ele começa, então, a desejar expandir sua visão do que é aventura. Fã do serviço aéreo postal que atravessava a cordilheira e inspirado pelo tema no trabalho sobre palíndromos – palavras que são iguais lidas ao contrário – ele adquire um caiaque (“kayak”) e aos poucos monta todo um universo cheio de apetrechos para atravessar um rio.
O que se torna recorrente em Um Doce Refúgio é demonstrar como é possível carregarmos tantas distrações dentro do “caiaque da vida” sem sequer percebemos. Às vezes ficarmos até fascinados por tanta “facilidade”. Porém também mostra a diferença entre viver à mercê da tecnologia em busca de um conforto ilusório e usá-la em prol da humanidade que cada um de nós tem guardado no fundo do barco (provavelmente na parte de suprimentos para uma vida feliz).
Porém, ao andar com uma imensidão de coisas em seu barco é inevitável encalhar algumas vezes. É aí onde Michel conhece novas pessoas e vai aos poucos descobrindo que há algo de errado em sua vida. Não necessariamente errado, mas parecendo querer se libertar do que desconhece, simplesmente seguindo o fluxo da corrente. “Kayak”, como sabemos, é um palíndromo, na palavra e no desenho da embarcação; ele pode ser visto de ambos os lados e ainda parecer igual. Pois é também é uma metáfora da vida, onde andar com a vida pra trás ou pra frente dá na mesma, e voltar às origem é um novo recomeço.
Infelizmente uma comédia que tenta ser em alguns momentos meio escrachada, o que quase estraga a bela poesia do seu tema. Porém, ajudando em um filme que deseja ser leve falando do drama da vida moderna: enquanto estamos enfurnados de tecnologia, mesmo para curtir a natureza os penduricalhos vêm junto. Tudo parece ter um significado peculiar, lúdico e metafórico. Até o celular de Michel, azul e retangular, que acaba virando na metáfora de uma balsa improvisada, que conecta a vida a lugar algum, tal como a nossa vida tecnológica, se a deixarmos dominar nossa consciência.
O filme para os saudosistas é um sonho, mas para os realistas um tormento. Traz ainda uma bela mensagem de humanidade simbolizada em um homem de meia-idade tentando cruzar um rio sem experiência alguma. O que não deixa de ser a situação de muitos de nós, perdidos nessa imensidão de informação em tempo real, consumismo desenfreado, “soluções” para problemas que não existiam antes das soluções terem sido criadas. E todo mundo rema seguindo a corrente.
“Comme un avion” (Fra, 2015), escrito e dirigido por Bruno Podalydès, com Bruno Podalydès, Sandrine Kiberlain, Agnès Jaoui, Vimala Pons, Denis Podalydès