[dropcap]D[/dropcap]ezenove anos. Esse é o tempo que separa Corpo Fechado, início dessa agora trilogia, até sua conclusão, ou expansão desnecessária, inflada e exagerada em Vidro. Mas nem por isso esse esforço deixa de ser um trabalho minucioso, curioso e competente de uma saga que se mantém dentro de seus próprios padrões do começo ao fim.
Não acredito que haja alguém que de fato antecipou esse momento após ter visto Corpo Fechado, um filme que inicia como um drama e, seguindo a cartilha sempre presente de seu idealizador, M. Night Shyamalan, se desdobra em uma reviravolta que busca a fantasia do cotidiano, das fábulas, das crenças e da imaginação. E se essa pessoa criativa antecipou tal momento, com certeza ela não imaginaria que o resultado conseguiria ser concretizado com tanto esmero e tanta paixão pela suas ideias originais.
E quais eram essas ideias? Bom, basicamente o minimalismo sendo trazido de volta ao mundo dos super-heróis. Do topo do Monte Olimpo (Hollywood) admiramos os poderes sobrenaturais de uma coletânea de deuses modernos nos intermináveis filmes produzidos pela Marvel e DC. Enquanto isso, Vidro nos convida a descer e observar esse fenômeno mais de perto, no cotidiano das pessoas comuns. De dentro de cada um de nós.
Essa jornada começa na rotina escusa de David Dunn (Bruce Willis), que se torna, com a ajuda do seu filho, Joseph (interpretado pelo mesmo ator, Spencer Treat Clark, em Corpo Fechado), um Justiceiro com uma capa de chuva. Quando ele decide caminhar (em uma ponta divertida com o próprio diretor) ele está em busca de fazer justiça com as próprias mãos, mãos essas aparentemente invencíveis, pois sua força descomunal que não é visível na postura de Willis, que parece apenas um velho razoavelmente em forma (mas a postura de Willis conta bastante).
As suas caminhadas recentes buscam obter mais informações sobre um serial killer cujo fetiche são garotas. Conhecido como “A Horda”, Kevin (James McAvoy), através de um trauma de infância, se desdobrou em quase trinta personalidades diferentes dentro de si, incluindo Fera, animalesca e que também possui força descomunal. Incertos a respeito de sua moral, Kevin é daqueles personagens que é vilão e vítima ao mesmo tempo, e mesmo não tendo um gancho de superação para exibir, possui uma profundidade suficiente para nos interessarmos por sua história.
Parte disso, é claro, vem da interpretação admirável de James McAvoy, que representa não apenas estereótipos, mas estereótipos com charme em suas (visíveis) diferentes personalidades. Kevin se tornaria um grande problema para roteiristas menos habilidosos que Shyamalan, mas aqui ele encontra um confinamento e condições que propiciam o seu uso funcional dentro da história de maneira orgânica. Nunca sentimos que as idas e vindas de sua personalidade é algo apenas conveniente para a história. Mas para entender a fundo isso, claro, será necessário assistir o filme anterior, Fragmentado.
Aliás, muito se aproveitará o espectador que assistir os dois filmes que antecedem esse terceiro, e em alguns momentos será primordial para que ele não fique perdido nas pistas que são apresentadas durante a projeção para que tudo se encaixe. No entanto, mesmo que você seja um marinheiro de primeiro filme ele ainda funciona, com apenas algumas ressalvas que dizem respeito ao passado de seus personagens.
Shyamalan parece estar no controle absoluto de suas criaturas, mas nada se compara com sua direção. Completamente à vontade em momentos de humor, de tensão e de medo, o diretor nos faz lembrar porque ele foi considerado uma revelação depois de sua estreia no cinema com Sexto Sentido, e tantos outros momentos que os fãs do diretor (e do cinema) poderão encontrar neste filme.
Criativo no uso da câmera e do enquadramento para nos propiciar momentos de medo e tensão, há, por exemplo, alguns momentos onde Kevin troca de personalidade e é relevante que vejamos o rosto de seu interlocutor, assim como momentos em que é melhor que vejamos a própria troca ocorrendo no rosto de McAvoy.
O uso de enquadramentos que limitam nosso campo de visão também funciona muito bem, pois se passando quase totalmente em um centro de tratamento psiquiátrico que mais parece uma prisão, é vital que, ao vermos nossos heróis, eles estejam com as paredes muito próximas. E esse artifício fica importante na questão do suspense, pois ao usar uma profundidade de campo muito rasa não conseguimos medir com certeza a distância que essas pessoas estão das armadilhas que existem e que evitam que elas saiam de suas celas. E repare como é frequente que eles se aproximem e se distanciem da câmera, tornando a cena frequentemente tensa apenas com essa escolha de filmagem.
No entanto, isso não quer dizer que o diretor mantém intactos os seus conhecidos vícios. Melhorando em muito sua arrogância e petulância, Shyamalan parece fazer aqui seu trabalho mais contido depois de uma sucessão de pretensões em seus últimos filmes. Ainda assim, é possível detectar alguns momentos aqui e ali em que lembraremos de sua antiga persona, da que joga tudo para o alto e não se importa muito em amarrar suas pontas temáticas (seja no roteiro ou direção).
O mesmo não se pode dizer de Samuel L. Jackson, que aqui escolhe representar um vilão extremamente frágil de uma maneira acertadamente contida, com uma economia de movimentos que beira o autismo. No entanto, sua introspecção na primeira metade é tão natural que somos levados a ficar com sérias dúvidas sobre o que ocorre na mente de Elijah Price. E parte disso também é virtude do próprio filme, que evita fazer exposições bobas que frequentemente vemos em trabalhos menos sutis, com cortes frenéticos demonstrando a rapidez com que certo personagem-gênio pensa. Não saber por que Elijah está junto desses dois titãs e é tratado da mesma maneira é o que nos faz ter respeito por essa pessoa fragilizada na cadeira de rodas.
Mas a função de L. Jackson/Elijah não termina por aí. Sendo o aficcionado por histórias em quadrinhos, é ele que faz os comentários mais perspicazes de quebra de quarta parede, e o faz não se tornando um incômodo para a narrativa e ainda a pincelando com uma nota poética que se torna surpreendentemente tocante. Sim, é possível chorar com Shyamalan, mas não pelo drama fácil, mas pela empatia do espectador com a paixão que ele exibe em entender completamente que fatos científicos valem muito menos para os seres humanos que uma narrativa gloriosa, e que é isso, no final das contas, que se está tentando resgatar na história.
Conseguindo unir o realismo da “vida real” com o idealismo que adoramos acompanhar nos quadrinhos, Vidro é uma combinação perfeita desses dois elementos e uma conclusão à altura dos dois outros filmes que são pontos altos na carreira de seu diretor. Ele poderia ser mais bem polido, mas do jeito que está deve empolgar os fãs da mitologia humana e irritar com moderação os caros, barulhentos, caprichosos e muitas vezes irritantes deuses do Monte Olimpo.
“Glass” (EUA, 2019), escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, com Samuel L. Jackson, Bruce Willis, James McAvoy , Sarah Paulson, Charlayne Woodard e Anya Taylor-Joy.