*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
[dropcap]V[/dropcap]iver Para Cantar é inspirado livremente no documentário A Folk Troupe (no original “Gang Zhao”, de 2013), que conta a história real desse grupo tradicional de ópera chinesa lutando para continuar apresentando peças milenares em um espaço condenado pelas autoridades. A ficção de Johnny Ma alimenta a mesma tradição da ópera chinesa, mas a atualiza para o tempo das cidades chinesas crescendo, se modernizando e demolindo todos os valores culturais de uma nação.
A história segue pelo caminho seguro do drama do grupo de ópera que vai perder seu teatro que será demolido. Seu público está cada vez mais velho e está morrendo. O peso da perda dessa tradição repousa em sua chefe/matriarca Zhao Li (Zhao Xiaoli), que ainda precisa lidar com a perda de sua sobrinha a quem considera filha, mas as duas mudanças estão relacionadas. É a modernização dos costumes, ou sua ocidentalização.
O que o filme trás de novidade é sua narrativa, que não chega a ser uma ópera porque quase não é cantada, mas vai aos poucos vai se entregando ao estilo. O que cumpre duas funções bem claras: trazer a arte para a vida comum e um final feliz a respeito do que o governo chinês é em sua maioria responsável. Se por um lado há o lirismo adentrando no dia-a-dia, enriquecendo a aventura do homem e da mulher comum, não deixa de ser uma solução hipócrita unir valores com os próprios vilões, sendo que talvez seja a censura falando mais alto.
Mas não podemos ignorar que a cultura oriental, fortemente coletivista, pode influenciar na visão chinesa a respeito das mudanças frenéticas de virada de século. Todas as óperas mostradas no filme trabalham com transição. Alguém pula de uma ponte e borboletas aparecem. Há referências mistas que envolvem peças de Shakespeare a filmes de Ozu. Tudo trabalha para que a sensação de que a arte, não importando de onde ela surja, mas principalmente sua narrativa, pulsa e luta para sobreviver frente à modernização das grandes cidades.
O que destaca Viver Para Cantar é que essa luta vira a própria narrativa, e lembrando sutilmente filmes recentes que trabalham essa junção do contemporâneo com a tradição fantástica, como Lazzaro Felice (ganhador de Cannes por melhor roteiro), é o contraste entre os dois mundos que alimenta nossa imaginação. Isso cria uma ruptura na tradição de histórias clássicas que mantém valores imutáveis na mesma medida em que a própria China está se transformando rapidamente, destruindo no processo boa parte de seu passado.
Exibido em Cannes e agora disponível na Mostra de São Paulo desse ano, Viver Para Cantar demonstra todas as contradições presentes hoje na nação chinesa, que elimina a pobreza em níveis recordes ao mesmo tempo que alimenta seus céus com poluição e seus tratores com a violência sistemática e desumana das agora capitais do mundo, como Xangai, Beijing e outras. O fato do diretor Johnny Ma ter transformado a ação dos tratores em trabalho de demolição em um show à parte é apenas mais um capítulo desses contrastes.
“To Live to Sing” (Chi/Fra/Can, 2019), escrito e dirigido por Johnny Ma, com Guidan Gan e Xiaoli Zhao.