*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
[dropcap]V[/dropcap]ocê Tem a Noite é daqueles filmes que ficamos durante o tempo todo tentando descobrir se estamos conseguindo acompanhar alguma história ou há algo mais do que vemos na superfície, e essa inconstância interpretativa no nosso cérebro não quer significa que o filme é ruim.“Eu não tenho nada. Você tem a noite.”
A falência de uma empresa centenária causa a demissão de funcionários habitantes de uma cidade portuária, e o que testemunhamos através das melancólicas lentes do diretor Ivan Salatic (que também assina o roteiro) diz respeito ao colapso da sociedade atual visto através dos tristes eventos de uma família, inserida nesse panorama a tal ponto que se tornam representantes dessa decadência.
Trocando em miúdos, esta é uma história sobre transição. O seu resumo pode ser ouvido de um homem velho, que lamenta seu infortúnio de não poder parar de trabalhar, e se antes, na juventude, o trabalho quebrava suas costas, pelo menos havia o “espírito coletivo” como significado, que compensa pela vida dura. Agora, destituído dos valores da camaradagem, indivíduos como ele sofrem ainda mais, destituídos até do significado de tal sofrimento.
Ele está obviamente comparando os modos de produção comunista e capitalista, regimes pelos quais sua geração fez parte, respectivamente. E esta não é necessariamente uma ode aos velhos tempos, mas o questionamento em aberto do que se ganhou nessa transição. Agora o velho perde tudo, exceto seus conhecimentos de sobrevivência primitiva, como pescar e vender. Mas lhe faltam os equipamentos. O corporativismo, tornando os pequenos barcos obsoletos, tornou seus trabalhadores incapazes de sobreviver às crises como a que eles estão vivendo.
Você Tem a Noite possui uma narrativa estruturada, mas prefere seguir por caminhos mais “artísticos”. A beleza do filme reside em suas tomadas, enquadramentos que lembram quadros vivos e que dizem mais sobre o vilarejo e as pessoas que nela moram, seus costumes e valores, do que mover a história de fato. Formato por fragmentos, a narrativa é meio caminho para percorrermos essa parte da História acontecendo diante de nossos olhos. Há enormes dúvidas na composição do filme, e elas alimentam o tom melancólico do que vemos.
Um garoto tem o braço mordido por um cachorro. A tentativa de consertar um motor para a reforma de um barco dá errado. Um mergulhador morre. Casais se separam. Os fragmentos em si só não dizem nada, mas é a junção que Ivan Salatic faz que termina extraindo um pouco de significado em meio a este passeio panorâmico sobre Montenegro.
“Ti Imas Noc” (Mon/Ser, 2018), escrito e dirigido por Ivan Salatic, com Jasna Djuricic, Boris Isakovic e Nikola Manojlovic.