O caminho de Wicked até os cinemas é longo. Primeiro, é lógico, o livro O Mágico de Oz, lá de 1900. O segundo passo, a adaptação para o cinema de 1939 que praticamente revolucionou o cinema e a cultura pop. Dorothy e seus amigos caminhando sobre a estrada de tijolos dourados está impresso na inconsciente coletivo da humanidade, assim com a famigerada Bruxa Má do Oeste.
Há quem diga que o esteriótipo de “bruxa pop” tenha até nascido com ela. Quase como um vilã clássica de dezenas e dezenas de filmes, gibis, livros e séries que se inspiraram, tanto na personalidade dela, quanto em certos detalhes visuais do filme. O chapéu pontudo, a vassoura, a capa, o nariz pontiagudo e a pela verde. E tudo correu nessa mesma toada até 1995.
O livro escrito por Gregory Maguire se chamava “Wicked: A Vida e os Tempos da Bruxa Má do Oeste” (em tradução livre, porque o livro foi lançado no Brasil apenas com o título Wicked) e, como o subtítulo diz, conta a história da vilã da história clássica, mas com a diferença de tentar entender as motivações e decisões da, agora batizada, Alphaba. A história discutia a ideia de o mal nascer com a pessoa ou dele crescer diante de um mundo que se permite liberar esse ódio e essa raiva para esse alvo e que a transformará na vilã.
Diante dessa premissa, o livro ainda discutia terrorismo e propaganda junto com a ideia de uma pessoa descobrir seu objetivo de vida e o fazê-lo custe o que custar. E se tudo isso parece meio pesado, tudo bem, em 2003, livremente baseado nessa história, estreava na Broadway: Wicked. Que discutia tudo isso aí também, mas com cenários enormes, canções incríveis e coreografias que faziam muita gente nem perceber o peso daquela história.
A peça ainda está em cartaz depois de 20 anos e já passou pelo planeta inteiro, incluindo o Brasil. Agora chega aos cinemas depois desses quatro parágrafos de explicação histórica que serve para encher linguiça, já que o resultado nas telas é tão irretocável que se tem pouco a falar dele.
Parte desse sucesso vem do nascimento da produção e da decisão de dar o roteiro para a mesma Winnie Holzman que escreveu a peça. Para melhorar, ela assina o texto com Dana Fox, que recentemente assinou as histórias Cidade Perdida, Cruella e Como Ser Solteira, todos com aquela pontinha de um humor que não quer arrancar risadas, mas sim acrescentar essa camada para a história. Nesse caso, fazendo isso para suavizar o peso de certos assuntos e também ocupar bem o tempo entre as canções.
Portanto, Wicked é leve e tem um humor sutil e bem colocado, sem nunca extrapolar o riso forçado, mas por ter personagens e situações tão poderosas e atuais, aceita ser emocionante e forte quando quer deixar claras suas ideias. Portanto, Wicked não é O Mágico de Oz em sua ingenuidade, ele tem bandeiras a serem levantas e provocações a serem feitas. Racismo, preconceito, “fake news” e pós-verdades, bullying, enfim, é possível alinhar muito coisa enquanto as duas estrelas do filme cantam.
E elas são o maior espetáculo do filme. A incrível Cynthia Erivo é uma Alphaba absolutamente perfeita e tão cheia de nuances e detalhes que é impossível não se emocionar com essa atuação e torcer para que a bruxa coloque Oz no chão junto com picareta do Mágico (Jeff Goldbum, sempre ótimo).
Do outro lado, a diva pop Ariana Grande praticamente estreia no cinema e é um achado incrível, principalmente por parecer entender absolutamente bem a sua personagem, Galinda, futura Glinda a Boa, aquela lá da bolha de sabão no Mágico de Oz. A agora atriz não perde nenhuma oportunidade no filme de encarar a futilidade e alienação de sua personagem com caras, bocas e reações que criam, não só uma menina mimada, mas também alguém insuportavelmente boa e ao mesmo tempo egocêntrica, mas que está aberta para esse crescimento e transformação. Acertadamente, antes do terceiro ato, mesmo se tornando uma “pessoa melhor”, Galinda continua sendo ridiculamente perdida em seu mundo. O contraste perfeito com a profundidade de Alphaba.
Isso tudo ainda dá absolutamente certo, graças ao trabalho multifacetado do diretor Jon M. Chu que surgiu muito tempo atrás com a continuação estilosa do filme de dança de gosto duvidoso Ela Dança, Eu Danço 2 (ele também fez o terceiro), depois se divertiu com o segundo G.I. Joe e com Truque de Mestre: O 2° Ato, só para em 2018 ser realmente reconhecido como um grande diretor com o simpático e adorado Podres de Ricos. Mas é importante citar toda sua carreira, pois em Wicked ele parece pegar um pedacinho de cada um desses filmes para juntar tudo em um épico do tamanho que a história de Alphaba merece ter.
Os números de dança e canções são incríveis, claros e gigantescos. A dinâmica entre os personagens é sempre bem construída de frente para a câmera, é possível entender cada reação bem-humorada e emocional de cada pessoa que está na tela. O respeito pelo designer de produção e pela construção daquele mundo (de modo prático, com muito pouco CGI perto dos outros filmes atuais!) é tão grande que é possível acreditar naquele mundo de um jeito que poucas grandes produções atuais conseguem. Por fim, quando é necessário fechar o filme com um terceiro ato empolgante e cheio de ação, ele não desaponta nem por um segundo de tela.
Como tudo no filme. É óbvio que cobrar Wicked de ser algo além desse musical divertidamente leve, mas que esconde por trás das canções algumas discussões importantes enquanto vai ligando sua história à Dorothy e seu trio de companheiros… tudo bem, pode cobrar bastante que o filme não decepciona em nenhum momento.
“Wicked” (EUA, 2024); escrito por Winnie Holzman e Dana Fox, à partir do musical de Winnie Holzman e do livro de Gregory Maguire; dirigido por Jon M. Chu; com Cynthia Erivo, Ariana Grande, Jeff Goldblum, Michelle Yeoh, Jonathab Bailley, Ethan Slater, Marissa Bode e Peter Dinklage (voz).