É impossível não se impressionar com 1917, novo filme do ganhador do Oscar, Sam Mendes. A trama simples se esconde por trás de uma ideia técnica maravilhosa e que resulta em um espetáculo ímpar para qualquer amante do cinema.
Nele, uma dupla de soldados durante a Primeira Guerra Mundial precisa cruzar o campo de batalha para levar uma mensagem para um batalhão que está prestes a cair em uma armadilha. O que Mendes (que também escreve o roteiro, em parceria com Krusty Wilson-Cains, à partir da lembrança do próprio avô do diretor) faz é elevar essa trama para um outro patamar ao pensar o filme como um único plano, sem cortes.
E nessa hora entra em cena outro ganhador do Oscar, o diretor de fotografia, Roger Deakins. É ele quem torna realidade uma ideia incrível de Mendes, porém completa e genialmente maluca. Assim como Festim Diabólico de Alfred Hitchcock, 1917 só “finge” ser um grande plano sequência, já que os cortes estão lá, porém escondidos. E muito bem escondidos, tirando um óbvio junto com o desmaio de um personagem, são mais de uma dezena de interrupções, e acredite, um bom observador vai encontrar no máximo uns sete ou oito.
Portanto, só isso já seria suficiente para o filme ser uma experiência inesquecível, esse esforço técnico que envolve Deakins enfiando sua câmera sabe-se lá onde para manter essa coreografia entre personagens, trincheiras, cidades destruídas, túneis e até um rio. E tudo vai ficando ainda mais complexo quando você junta a isso toda parte de captação de som, iluminação e diversos outros detalhes de efeitos especiais e digitais que criam essa sensação incrível de realidade. Mendes e Deakins não só te convidam para observa a Primeira Guerra, como te jogam bem no meio dela.
Tudo isso sem nunca se permitir ser apenas uma câmera ligada acompanhando dois soldados correndo por aí. 1917 tem composições lindas e que aproveitam o trabalho impecável de Dennis Gassner e sua equipe de design de produção. Gassner é um ganhador do Oscar por “Bugsy”, mas recentemente assinou o visual de Blade Runner 2049, filme que deu o Oscar a Deakins e é um exemplo incrível de criação de mundo. É lógico que em 1917 ele não precisa inventar nada, mas a precisão de seu trabalho é fenomenal. Nada parece fora do lugar e tudo acrescente uma camada excitante de realidade ao esforço técnico de Mendes e Deakins.
Essa inquietação visual da dupla permite cenas tecnicamente memoráveis, como a do encontro com um avião, momentos lindos como da madrugada em uma cidade destruída com seu balé de sombras e, por fim, empolgantes como a corrida no terceiro ato. Isso sem perder sensíveis e quase poéticas sequências, como aquela envolvendo um bebê e o batalhão em silêncio escutando a canção de um soldado. Enfim, seria possível citar um punhado ainda maior de grandes momentos que constroem essa “jornada sem cortes”, que não perde nenhuma oportunidade de ser um épico de guerra impressionante e único.
Entretanto, por mais que todo esse visual deixe o espectador em um torpor sensorial, é preciso lidar ainda com essa trama simplista e cheia de clichês, mas que funciona perfeitamente bem diante das necessidades do filme. É lógico que, assim de cara, é possível achar que ela não está aos pés do visual, mas sua construção é precisa e consegue fazer com que a caminhada do protagonista não seja apenas empurrada por essa desculpa estratégica, mas sim uma jornada (sem medo de repetir o termo) onde sua vontade de chegar ao final não é motivada por uma ordem, mas sim por uma vontade maior, instigada por uma série de razões que vão crescendo aos poucos, junto com a história.
Mendes ainda completa seu 1917 com a oportunidade de dar ao espectador uma impressão de que cada pausa na história será presenteada com uma participação especial de algum ator britânico incrível e que sempre faz questão de valorizar o pouco tempo de tela. Por mais que a dupla de protagonistas vivida por Dean-Charles Chapman e George MacKay dê conta do recado, o esforço maior é com que eles sejam parte desse cenário e só aos poucos comecem a ganhar vida. Suas verdadeiras personalidades, aquilo que os faz serem não apenas dois soldados pinçados do meio de uma multidão sem rosto é algo que surge desse caminho.
1917 é então esse filme que cria uma rima onde esse campo gramado pode sim ser o começo e o final de uma batalha sangrenta e violenta. Um trajeto que acompanha esses dois soldados em uma missão muito maior que eles, tão grande e tão realista que você só percebe que a câmera de Mendes e Deakins não parou para você respirar bem depois deles já terem te enganado com seus cortes escondidos. Um ritmo frenético, mas que também sabe respirar e entender o quanto é importante não descolar o olhar de todas essas transformações.
E ainda que o filme comece no dia seis de abril de 1917 e acabe no dia seguinte, é ainda um retrato dessa mudança, do começo do fim dessa guerra. Em dois momentos durante o filme os protagonistas cruzam seus caminhos com a lisura branca de uma cerejeira, uma árvore que vê em suas flores a representação do fim do inverno e a chegada da primavera. 1917 então é sobre essa esperança de que no final daquele campo bucólico nem sempre aqueles soldados iriam encontrar uma guerra, talvez ainda mantivessem o sonho de encontrar a paz, nem que seja por um segundo de olhos fechados e com a cabeça descansado escorada em uma árvore.
“1917” (UK/EUA, 2019), escrito por Sam Mendes e Krusty Wilson-Cains, dirigido por Sam Mendes, com Dean-Charles Chapman, George MacKay, Daniel Mays, Colin Firth, Andrew Scott, Mark Strong, Benedict Cumberbatch e Richard Madden