[dropcap]S[/dropcap]am não foi o primeiro a dormir (ou entrar em coma) e perder o apocalipse. O cinema está cheio desse pessoal, mas, nem por isso, tal ideia deixa de ser interessante. Ainda mais quando ela caminha para algo inusitado como em A Noite Devorou o Mundo.
O Sam, no caso, é vivido pelo ator norueguês, Ander Danielsen Lie, um jovem que surge em meio a uma festa na casa da ex-namorada em busca de uma caixa de fitas com alguns sons de seu passado. Sozinho, mesmo em meio à multidão, Sam acaba indo parar nesse escritório, onde pega no sono e, quando acorda, se vê em meio ao que sobrou de civilização, com uma Paris dominada por zumbis.
A ideia poderia parecer batida caso Sam saísse por aí tentando enfileirar momentos de tensão e cabeças decepadas, mas não é isso que acontece, ele permanece por ali. Aceita sua nova vida. Afinal, como ele próprio descobre mais para frente, os mortos são os novos normais, ele é que é a exceção.
A história é uma adaptação do livro de Pit Agarmen (pseudônimo de Martin Page), que originalmente encara a história mais como uma crítica velada ao fim da humanidade e o como esses zumbis são uma espécie de sinal do fracasso. Junto disso, seu protagonista tenta viver nesse prédio enquanto encara o lado mais violento de qualquer apocalipse zumbi: a solidão.
O filme segue mais por esse lado, com o roteiro assinado por Jérémie Guez, Guillaume Lemans e Dominique Rocher, esse último também sentado na cadeira de diretor. O que ambos fazem é entender esse “pós mundo” através do olhar desse sobrevivente. Um herói que foge do estereótipo do gênero e não erra a cada decisão com os mortos-vivos, em pouco tempo ele tem tudo sob controle, e essa é a pior parte.
O que se fazer depois que não existe mais nada é desesperador. Rocher aponta o caminho de seu filme para um lado sensorial que carrega o espectador para dentro dessa sensação melancólica do quanto se é pequeno diante do mundo. Sam dorme escutando o ruído das ruas, perde os barulhos selvagens por trás da porta e sonha com os passos invadindo sua segurança.
A Noite Devorou o Mundo é então um filme de terror silencioso, não sobre os zumbis, mas sim sobre essa espécie de Robison Crusoé apocalíptico, não alguém desesperado pela fuga ou salvamento, mas sim tentando se adaptar e sobreviver com aquilo que tem em mãos. Alguém que sobe até o teto do prédio e vê um horizonte silencioso, sem os clichês visuais do apocalipse, apenas uma Torre Eiffel cortando o céu. Sem focos de incêndio, caos, fumaças ou perigos, apenas o silêncio. E o silêncio quase sempre é ensurdecedor.
Suas fitas servem para ele se lembrar de seu passado, a conversa com o zumbi preso no elevador (vivido pelo ótimo Denis Lavant em mais um papel incrível!) não passa dele próprio tentando entender o que realmente sente. E quanto mais longe ele vai nesse mundo controlado criado por sua sobrevivência, mais aterradora fica essa situação.
Rocher não tenta fazer nada disso com um trabalho que atrapalhe o ritmo lento e quase contemplativo do filme. Sua câmera é direta e simples, assim como sua história. Acompanhar o caminhar do personagem em direção à loucura é feito de modo tão sutil que é difícil não cair em sua armadilha. Seu Sam perde a luta, mas o faz, pois começa a perder o controle de suas convicções, não falha, mas vai tentando o próprio limite até ele próprio ser obrigado a fazer aquilo que ele sabe que deve ser feito.
A Noite Devorou o Mundo é inevitável, não quer ser um filme de terror com gore e zumbis, mas sim um terror psicológico que não tem pena de seu protagonista e permite que seus espectadores o acompanhe nessa jornada inesperado por essa noite. Não uma noite propriamente dita, só com a lua como testemunha, mas sim esse momento que vem depois do sol, da esperança e da iluminação.
Sam precisa olhar para a frente, em direção ao horizonte e ao sol, seguir nesse caminho e deixar as fitas e vidas passadas para trás. Sobreviver não é mais uma opção, muito menos esperar que ela chegue. Ele pode ter dormido e perdido o apocalipse, mas ainda precisa ter força para permanecer sendo o protagonista de sua própria história.
Confira os outros filmes da coluna 666 Filmes de Terror
“La Nuit a Devoré le Monde” (Fra, 2018); escrito por Jérémie Guez, Guillaume Lemans e Dominique Rocher, a partir do livro de Pit Agarmen; dirigido por Dominique Rocher; com Anders Denielsen Lie, Golshiften Farahani e Debis Lavant.
1 Comentário. Deixe novo
Dentro de um gênero tão batido e cheio de clichês esse filme é um suspiro de ar fresco. Acho que esse foi o único filme desse gênero me gerou um impacto parecido com o que senti na primeira vez que assisti 28 Days Later, quando tinha lá pelos meus 14 anos.
Os planos alongados que ajudam a não nos poupar da tensão e o paralelo entre o começo e o fim do filme, que apelam bastante para o sensorial do desconforto físico e sonoro, são pontos que valem se destacar.