Vidas Passadas | Mais que simplesmente um destino

Em certo momento de Vidas Passadas, longa de estreia da diretora Celine Song, se discute o conceito coreano de “In-Yun”, que poderia ser traduzido por algo perto de “destino” ou até “providência”, mas talvez vá um pouco além disso. Ele diz respeito a duas pessoas, ou almas, que por alguma razão específica, continuam se esbarrando vida após vida.

Mas talvez a ideia não seja através de uma falta de opção, fim de livre arbítrio ou condição divina, mas sim algo que o a cultura coreana acredita ser, porque é. Como se aquelas almas precisassem daquela outra parte para se completarem. Também esqueça o conceito brega de “alma gêmea” (ou as metades da laranja do Fábio Jr.) o In-Yun parece estar no campo a existência do ser como único, não dependendo do outro para nada.

Vida Passadas começa olhando para esses três personagens em um balcão de bar, mas vistos por um outro casal que não surge na tela, apenas tentam entender o que significa aquela cena onde uma mulher cercada por dois homens conversa com um enquanto deixa o outro de lado. É possível dizer que as adivinhações das vozes até esbarrem em um certo preconceito movido por esteriótipos tão difíceis de serem sacrificados pelo mundo atual, mas é mais que isso. É como se a diretora convidasse o espectador para fazer o mesmo, mas com mais calma, observando melhor tudo aquilo e, aos poucos, entendendo esse conceito de In-Yun na pele.

A moça é Nora (Greta Lee), o homem calado ao seu lado é seu marido, Arthur (John Magaro). Do outro lado está Hae Sung (Teo Yoo), seu amigo de infância que vinte anos depois delas ir embora da Coreia, volta a vê-la. E se esse parágrafo soa óbvio para o que vem depois daquele linda primeira cena perfeitamente orquestrada pela diretora, a maior arma de Vidas Passadas é, justamente, não ser óbvio.

Song também escreve o roteiro e deixar escapar pontos autobiográficos para mover essa personagem. Uma criança que vai embora de seu país de origem com os pais artistas em busca de novas possibilidades. Uma jovem que cresce em um lugar completamente diferente (no caso do filme, o Canadá) e uma mulher que busca seu sonho ocidental de se tornar uma escritora na meca cultural do mundo: Nova York.

No seu filme, Hae Sung é o primeiro grande amor de Nora, um amor que dura não mais que um encontro supervisionado pelas mães dos dois em um parque. Depois disso ele é um jovem que viveu uma vida sem surpresas na Coreia até se tornar um engenheiro. Talvez seja essa falta de surpresas do decorrer de seus anos que o leve a procurar por sua antiga amiga. Talvez seja o In-Yun.

A questão é que Song acompanha essas histórias como se olhasse de longe para essas duas almas que pedem para se juntarem, mesmo diante da distância. Não só geográfica, mas de vida. Vidas Passadas poderia ser um romance qualquer, como o próprio marido de Nora cita em certo momento, mas não é. O resultado é muito maior que isso e fará absolutamente qualquer espectador pensar sobre o assunto com um tom de melancolia, alegria, tristeza e lágrimas que constroem um filme único, apaixonante e contundente.

Um filme dirigido por uma estreante em longas-metragens que parece ter a sensibilidade e precisão de uma veterana. Suas composições são perfeitas e absolutamente delicadas, como se olhasse para esses dois personagens com a sinceridade e com o respeito que merecem, afinal, é fácil perceber que aquele In-Yun entre eles significa muito mais do que uma resolução romântica. Um trabalho que busca enxergar essas duas almas respondendo à outra e não simplesmente agindo. Um filme de olhares que dizem muito mais coisas do que qualquer linha de diálogo ou reviravolta. Mas que, ao mesmo tempo, dá um aperto no coração ver aquelas três pessoas entrelaçadas por essa força maior que eles.

Diante desse trabalho tão poderoso de Song e essa necessidade de enxergar seus personagens pelo não dito e pelo sentido, o trio de personagens é espetacular. O Haw Sung de Teo Yoo parece deslocado e quebrado em sua vida, mesmo diante de um aparente sucesso dentro daquilo que as gerações anteriores à dele enxergam como sucesso. Condescendente com seu destino, mas preso a um “status quo” que constrói um personagem quase constrangedor de tão duro e incomodado de ter que sair de seu mundo para tentar entender uma outra realidade.

Surpreendentemente, pela falta de tempo em tela, o Arthur de John Magaro é oposto do coreano, mas montado através de uma força que não esconde essa fragilidade. Não existe para ele uma disputa, mas os momentos mais derradeiros do filme o colocam quase como alguém com uma força e uma sensibilidade tão grande quanto o amor dele por Nora. Nunca tendo a ver com qualquer tipo de possessão ou masculinidade, mas sim com a humildade de ser alguém para estar lá quando a esposa precisa. Entendendo a importância de ser o homem quieto no balcão do bar, já que aceita seu lugar nesse In-Yun. Mas ainda, entende que talvez esse seja seu In-Yun, como acaba discutindo com Haw Sung em um momento completamente maduro e inteligente do roteiro. Deixando claro o quanto Vidas Passadas é um filme que sabe exatamente onde quer estar.

Mas todos os holofotes do filme ficam com a Nora de Greta Lee, dona de uma capacidade monumental de entregar diálogos completos com o olhar sem que sequer uma palavra seja dita. Song percebe isso e aproveita cada momento possível para olhar para Nora enquanto ela reage e tenta entender, observar e refletir sobre aquilo que está sendo dito. Nunca forçando um sentimento ou uma reação exagerada, mas sempre como se estivesse realmente tendo que entender o quanto é importante para a vida dela cada decisão ou passo que ela dará depois disso.

Até porque, as “vidas passadas” do título não se referem a encarnações, mas sim àquelas duas jovens crianças na Coreia que nunca deixarão de existir. Ou a jovem escritora que conheceu uma paixão em um retiro de artistas. Cada decisão cria novas vidas, mas elas nunca serão apagadas da existência daqueles que viveram aqueles momentos, que são eternos, mesmo sendo apenas lembranças. Caminhos que se cruzam e se entrelaçam, mas nunca são esquecidos. Talvez o In-Yun seja isso, esses lugares que se repetem, mas são sempre novos e que mudam a vida de todos que estão naquele lugar vivendo aquilo.

O casal tentando entender o trio de personagens no bar talvez nunca venha a saber quem realmente eram aquelas pessoas e muito menos o que elas significavam umas para as outras, mas com certeza, mesmo que por um momento, viverão aquelas vidas sob suas visões. E talvez seja isso que todo grande filme tem a responsabilidade de fazer. Vidas Passadas não só faz isso, como faz de um jeito que será difícil esquecê-lo.


“Past Lives” (EUA/Cor, 2023); escrito e dirigido por Celine Song; com Greta Lee, Teo Yoo e John Magaro


Trailer do Filme – Vidas Passadas

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