Se Águas Profundas dá errado, não é por suas qualidades, que são muitas, mas sim por estar travado em um lugar onde certas opções eram mais comuns e hoje ninguém mais aguenta muito elas. Ainda que ficar olhando para o casal formado por Ben Affleck e Ana de Armas faça valer cada frame do filme.
Infelizmente, quem também está parado em algum lugar do passado é o diretor Andrew Lyne, conhecido por colocar sua assinatura em filmes sexys e finos como Flashdance, 9 ½ Semanas de Amor e Atração Fatal, mas que não filmava nada desde Infidelidade em 2002. Talvez ele ainda esteja por lá e por pouco isso não destrói o trabalho inspirado no livro da experiente best seller Patricia Highsmith, que tem seu nome atrelado a obras como as que deram origem ao filme Carol e mais uma sacola de adaptações de seu personagem mais conhecido, Tom Ripley.
Desse monte de nomes conhecidos e ainda a presença de Sam Levinson (Malcom & Marie e a série Euphoria) no roteiro, resulta esse Águas Profundas. Um suspense sobre um casal com óbvios problemas de relacionamento, mas que aos poucos vai se tornando um quadro de obsessão onde a esposa (Ana de Armas) faz absolutamente de tudo para tirar o marido (Ben Affleck) de uma apatia enquanto vê ela se “relacionando” com uma quantidade exorbitante de “amigos”.
A ideia inicial é tensa, complexa e quase sádica com o protagonista, já que não se importa nem por um segundo de colocá-lo na posição de vítima de uma situação. Tendo que ultrapassar a humilhação sofrida em público, coma esposa quase acasalando com os amantes na frente dele e de todos seus amigos.
Se o parágrafo anterior parece ofensivo, o que o filme faz é bem pior. Ao escolher um lado, o filme não se importa nem por um segundo sequer de tentar entender de onde vem essa selvageria da esposa. O filme simplesmente não quer nunca deixar o espectador nem ao menos desconfiar das motivações da moça. Para Lyne, o interesse nela é o de criar uma criatura hiper sexualidade, sem sentimentos, nua e embriagada. O que é um desperdício com a personagem, já que no terceiro terço do filme ela se mostra complexa, dolorida e poderosa.
Do outro lado, Lyne parece confortável com o protagonista anulado por seu sentimento de obsessão. Affleck não é sexy, mas é simpático, impecável, rico, coerente e centrado. Deixando sua perda de equilíbrio só para perto do fim, já que existe uma necessidade desesperada de fechar a trama de um modo pouco corajoso, didático e até meio bobinho.
O surpreendente é que, mesmo com todos equívocos ligado à personagem da esposa e uma necessidade meio desesperada de expô-la, o filme funciona por quase dois terços. Principalmente, pois deixa no ar a dúvida sobre a real índole do marido. Ao mostrar as reais intenções dele, e sem ainda ter entendido ela, o espectador fica perdido em um filme sem ninguém para torcer. Ou entender. Aceitar. Não achar que merece ser vilanizado.
O melhor de Águas Profundas é a dualidade. Nos momentos finais, com ambos personagens dominando seus arcos e o espectador entendendo suas motivações, o filme decola e se faz ser entendido. Mas isso demora demais para acontecer e Lyne sabota o próprio filme por achar que ainda está fazendo um “soft porn chique” nos anos 90.
Águas Profundas ainda se salva graças ao casal de protagonistas. Affleck, assim como em O Contador, faz um ótimo trabalho por aceitar uma espécie de anulação de sentimentos. Já Ana de Armas vai do lado oposto e briga até com a direção descontroladamente apaixonada por Affleck de Lyne, o resultado é uma personagem incrível. Seu arco culmina em um amadurecimento da personagem, mas enquanto isso não acontece, ela dá conta do recado, tanto na hora de ser sexy, quanto em uma espécie de selvageria à flora da pele que é muito mais complexa do que só uma embriagues (como Lyne tenta fazer).
E sobre tudo isso, os dois são lindos. E isso definitivamente ajuda a fazer o tempo passar e não deixar ninguém se irritar com um terceiro ato destrambelhado, preguiçoso e agitado demais. Mas Lyne sabe o que fazer, é ele que dá isso de presente para o espectador, é ele também que abre e fecha o filme com exatamente a mesma cena, mas deixando claro que duas cenas só são iguais se você não tiver mais nenhum contexto.
Nesse caso, um filme inteiro, que erra e tropeça, mas obtêm o objetivo desses dois momentos que parecem iguais, mas tem dois arcos de personagens que transformam eles em uma experiência cinematográfica interessante, daqueles onde o espectador conhece bem os personagens e entende o que está acontecendo.
“Deep Water” (EUA, 2002); escrito por Zach Helm e Sam Levinson, a partir do livro de Patricia Highsmith; dirigido por Adrian Lyne; com Ben Affleck, Ana de Armas, Tracy Letts, Grace Jenkins, Dash Mihok, Jacob Elordi, Rachel Blanchard, Lil Rel Howery, Finn Wittrock e Brendan Miller