O Contador talvez passe meio despercebido por um montão de gente, mas não tenha dúvidas, em um ano tão morno de grandes filmes a serem lembrados, o novo filme dirigido por Gavin O´Connor devia estar entre esses destaques.
Mas essa “passagem despercebida” já não parece ser uma novidade para o diretor que por duas vezes, tanto em Guerreiro quanto em Força Policial, esteve muito além da média, mas parece ainda não ser devidamente relembrado (sem contar o ignorado faroeste Em Busca da Justiça). E uma coisa que todos esses filmes de O´Connor têm em comum com O Contador é essa vontade de contar a história de personagens muito maiores que suas tramas.
Nesse caso, a história de um cara “aparentemente” chamado Christian Wolff (Ben Affleck), que parece ser um simples contador de uma cidadezinha qualquer, mas que na verdade é mais (não) conhecido por fazer a contabilidade de grandes criminosos pelo mundo. E como um investigador do Tesouro dos Estados Unidos vivido pelo sempre ótimo J.K. Simmons aponta, ninguém trabalha para esses caras todos e continua vivo por muito tempo.
Curiosamente, a ação de O Contador não vem de um trabalho no passado ou coisa do tipo, mas sim de um novo contratante que acaba mexendo com o contador errado. Na verdade o problema é ainda um pouco mais complexo, já que Wolff tem um grau, ainda que leve, de autismo, o que faz dele um personagem tão complexo que valoriza ainda mais o filme.
E esse ponto inicial do roteiro de Bill Dubuque (de O Juíz) transforma o que poderia ser um filme comum em algo bem acima da média. Um texto redondo e que não perde um frame sequer para desenvolver esse personagem e todas suas motivações. Dubuque parce ter a impressão acertada de estar escrevendo para um filme, então nada escapa de sua visão e O´Connor parece captar perfeitamente bem a ideia.
O Contador então é um filme visual em cada detalhe, da casa vazia de Wolff até seu trailer cheio de “pagamentos”. Da gaveta com os três talheres, do prato de comida até a primeira Action Comics. E é lógico que parte disso fica na conta do trabalho de designer de produção de Keith P. Cunningham (responsável pelo visual incrível de filmes como Zodíaco, Star Trek e A Rede Social), mas grande parte do prazer de ver tudo isso fica também no quanto cada detalhe consegue ser bem usado na trama. Nada parece descartável.
Do tiroteio misterioso no começo até a série de flashbacks que permeiam a ação, tudo está amarrado. Da crise do jovem Wolff ao não conseguir encontrar a última peça do quebra-cabeça até o quanto seu personagem, já adulto, acaba colocando tudo em risco para encontrar a “peça” que falta de seu misterioso novo contrato. Do mesmo jeito, é uma quase obsessão pela “última peça” que o faz colocar tudo em risco pela segurança da personagem de Anna Kendrick, já que ela é a o que falta nele para ele se sentir mais humano.
Mas não se enganem, O Contador não é um suspense qualquer, bem pelo contrário, já que sempre que Wolff é colocado contra a parede ou em perigo, nada fica em sua frente e o personagem se torna um assassino frio e objetivo, infalível e incrivelmente preciso. E com isso em mãos, O´Connor dá um show de ação, com sequências empolgantes e claras, violentas e cheias de personalidade. Cada tiro e golpe é seguido por sua câmera, visceral e com muita classe.
E sim, no meio disso está Ben Affleck e, piadas à parte, a falta de expressão e frieza do personagem cabem nele como uma luva. Nas mãos erradas, o autismo do personagem poderia se tornar caricato e até meio bobo, mas Affleck é contido, não se permite sair dele nem por um segundo e em nenhum momento se deixa levar por qualquer esteriótipo. E não importa se isso é uma opção do roteiro, do diretor ou de qualquer outro envolvido no projeto (já que não faltarão detratores de Affleck par apontar isso), é o ator que consegue colocar isso em prática.
Ajuda também a presença de um elenco de apoio incrivelmente acertado. Simmons, como sempre, tem uma credibilidade em cada palavra, seja em um grito ou em um monólogo cansado com os pés para cima. E além da sempre simpática Kendrick, Jeffrey Tambor e John Lithgow ainda completam o elenco que fica ainda melhor com o magnético Jon Bernthal, que não deixa de aproveitar cada oportunidade que tem (como fez em Corações de Ferro, Lobo de Wall Street e na série Demolidor). O ator surge então como um vilão que fica entre o despojado e o violento e é o perfeito “outro lado da moeda” do protagonista (com direito a uma grata surpresa no final).
E tudo isso junto resulta em um dos mais interessantes filmes do ano. Um filme de ação inteligente e desafiador, que respeita a esperteza de seu espectador e faz um esforço enorme para estar acima da mesmice que envolve o gênero. Um filme que mereceria ser lembrado no resto do ano e que com certeza irá figurar nas listas de melhores de 2016 de muita gente.
The Accountant (EUA, 2016), escrito por Bill Dubuque, dirigido por Gavin O´Connor, com Ben Affleck, Anna Kendrick, J.K. Simmons, Jon Bernthal, Jeffrey Tambor, Cynthia Addai-Robinson e John Lithgow