Gosto de histórias de amor contadas de um jeito não convencional. Nos filmes, nas séries, nos livros. Nas novelas também, por que não? O casal combina, até torcemos para que fiquem juntos, mas são tantas idas e vindas, tantos encontros e desencontros, tantos caminhos e descaminhos. Se vão ficar juntos no fim, pouco importa. Será uma história marcante, vai ficar na memória.
Gosto dessas histórias que não seguem aquele jeitão antigo e tradicional de romance dos sonhos. Sem apelar a todo custo ao final feliz dos contos de fadas. Sem menosprezar a inteligência do público. Sem apelar. Casos de amor complicados, que deixam as duas partes do casal matutando, agindo errado, tropeçando, sem saber para onde ir.
Como acontece do lado de cá da tela. Nos apaixonamos, nos envolvemos, nos questionamos se vale a pena mergulhar nessa piscina ou se é melhor colocar as pontas dos pés e ficar perto das beiradas. A água pode estar fria demais e causar um choque térmico, pode estar quente demais a ponto de nos desidratar, pode não dar pé e nos afundamos à espera de um bote salva-vidas. Mas também pode ser uma atividade prazerosa, braçada a braçada, pernada a pernada, soltando o ar pelo nariz submerso, puxando o ar virando a cabeça para o lado e seguindo adiante. O mais completo dos exercícios.
Nem todo mundo gosta dessas histórias de amor contadas de jeitos não convencionais. Nas telonas, nas telinhas, nas páginas. Tem quem prefira ficções baseadas em sonhos, apenas em sonhos. A realidade já é cheia de histórias não convencionais, complicadas, cheias de idas e vindas. É compreensível, mas me parece um desperdício.
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No meu último aniversário, ganhei o livro Pessoas Normais da minha irmã e da minha cunhada. (Se me perguntarem sobre um possível lobby informal para a escolha do presente, exercerei o direito de não produzir provas contra mim). Escrito por Sally Rooney, o romance conta a história dos irlandeses Connell e Marianne. Ele, um cara pobre para os padrões daquele país. Ela, de classe alta. Ele, popular no colégio. Ela, solitária nas aulas e nos recreios. Ele, filho de mãe solo, jovem e empregada doméstica. Ela, filha da patroa. Os dois se conectam num romance às escondidas. Quando vão para a faculdade, o cenário se inverte. Connell passa a se sentir excluído, isolado, perturbadoramente só. Marianne ganha novas amizades e uma popularidade até então improvável.
Fiquei obcecado pelo livro e indiquei para todo mundo. Gente próxima sabe disso. (Se me perguntarem se esse texto é só uma desculpa para falar de Pessoas Normais, não nego nem confirmo). Naturalmente, corri atrás de Normal People, minissérie em 12 episódios da Hulu. Adaptação bem fiel ao livro, tem o roteiro da mesma Sally Rooney, junto com Alice Birch e Mark O’Rowe.
Connell é interpretado pela então revelação Paul Mescal (a minissérie é de 2020). Daisy Edgar-Jones encarna Marianne com o mesmo tom blasé alternado com picos de emoção genuína do livro. Interessante pensar que essa história de amor contada de um jeito não convencional não se limita a ser mera história de amor contada de um jeito não convencional. Não que isso seja pouca coisa, diga-se. O abismo social entre os protagonistas causa ruídos, alguns não ditos. Saúde mental, autoaceitação, famílias disfuncionais, famílias terrivelmente felizes e a imprevisibilidade dos sonhos estão entre os temas aparentemente laterais para quem espera apenas uma história de amor contada de um jeito não convencional. O romance vai e volta. E vai e volta. Algumas vezes. Tantas vezes. Se você quiser saber se Connell e Marianne terminam juntos, melhor ler o livro ou assistir à minissérie, não vou dar essa resposta de mão beijada.
A angústia da incerteza é afiada na escrita de Sally Rooney, tanto nas telas quanto nas páginas. E no mundo real, qual romance não é incerto? Por que esperar que as histórias de amor ficcionais rimem com convencionais?
Esse jeito meio torto, não linear, cheio de dúvidas, é a marca de Pessoas Normais, de Normal People. “Me parece a essência perfeita do amor”, definiu Luane Fratelli, amiga devidamente evangelizada pela minha obsessão típica de pessoa normal.
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Atire a primeira pedra quem não tem suas histórias de amor não convencionais. Com linha do tempo não linear. Com peculiaridades e esquisitices quando vistas de fora, sob o manto da racionalidade e ausência do envolvimento emocional.
O namoro de infância com data de validade estampado nas nossas testas. O relacionamento da adolescência que só termina na velhice. O casamento de décadas, interrompido pela morte. O casamento de décadas, desgastado pelo tempo, surpreendendo a família pela separação tardia. A paixão de Carnaval, de fim de semana, de feriado, sem futuro possível, com um presente eterno. O namoro curto, mas avassalador. O caso rápido, que deixa marcas por anos. Os anos transando com a mesma pessoa sem envolvimento emocional. A ausência de respostas para entender por que ainda se está junto com quem não existe mais conexão. A tristeza de se deixar manipular pelo desejo. O cinismo de manipular pelo desejo.
Desejo, a marca de Pura Paixão. No filme francês, disponível na Netflix, Laetitia Dosch é Hélène Auguste, divorciada, com dois filhos, que começa um intenso romance com Aleksandr, diplomata russo. Casado, o personagem interpretado por Sergei Polunin a encontra de tempos em tempos, sem a menor preocupação com qualquer tipo de compromisso. Baseado no livro Paixão Simples, de Annie Ernaux, o filme mostra como uma paixão avassaladora é capaz de tirar de órbita até as mais racionais das gentes. Porque ninguém controla o desejo.
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“É esse lance de cada pessoa ter um significado diferente de amor nas nossas vidas… Que seja um amor mal resolvido, um amor nunca consumado, um amor platônico. Enfim, existem vários amores”, foi como a Luane definiu, ou tentou me definir, o maravilhoso Vidas Passadas. (Se me perguntarem sobre mais uma obsessão, não exercerei o direito de ficar calado).
Dirigido e roteirizado por Celine Song, o filme acompanha Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo). Amigos de infância profundamente conectados, os dois se separam depois que a família de Nora se muda da Coreia do Sul para os Estados Unidos. Os anos passam, eles se reencontram. E o restante você só vai saber ao assistir, mas garanto que vale muito a pena. Mesmo. Sério. De verdade. Recomendo.
Em Vidas Passadas, a palavra coreana “In-Yun” é uma espécie de fio condutor. Traduzida como destino ou providência, indica a conexão entre duas pessoas que se esbarram em algum momento da vida. Caso se trombem por acidente, algo entre elas aconteceu em suas vidas passadas. Se essas duas pessoas se amam, houve milhares de camadas de “In-Yun” ao longo de milhares de vidas anteriores. Vai muito além da crença ou não crença em reencarnação, não é esse o ponto.
Vidas Passadas faz pensar no “se”. Essa conjunção subordinativa indica hipótese ou condição, podendo ser sinônimo de “no caso de”. Se tivesse ido àquele encontro e não fosse encher a cara na balada. Se a resposta fosse menos impulsiva no meio da discussão. Se tivesse largado tudo para morar em outra cidade com a pessoa amada. Se tivesse coragem para expressar os sentimentos. Se vocês não tivessem se esbarrado. Se fosse tão fácil como as histórias de amor contadas de um jeito convencional…
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Amor romântico, amor erótico, amor platônico, amor materno, amor paterno, amor fraterno, amor de filhos, amor de amigos (sim!), amor por animais, amor canino, amor felino, amor pela cidade, amor pelo time de coração, amor pela profissão (por que não?), amor à arte, amor ao próximo, amor próprio, amor à vida, amor pelo dinheiro (é…).
Segundo linguistas, são diversas as origens da palavra amor. Não me arrisco a explicar aqui, mas o pouco humilde idioma português condensou em quatro letras um sentimento tão confuso quanto conflitante e necessário, variando conforme as relações.
Amplo e múltiplo, o amor não anda em linha reta, capturando até quem se julga insensível e impenetrável. Como as histórias de amor contadas de um jeito não convencional, tão capazes de nos lembrar que amamos quando humanizamos.
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