Talvez o remake de Annie sofra daquele conhecido problema de hoje em dia: alguns filmes com um teor mais ingênuo simplesmente não conseguem superar a barreira do cinismo contemporâneo. Pelo menos nesse caso não é apenas esse o diagnóstico, pois o diretor Will Gluck (do péssimo A Mentira) não faz o menor esforço para tirar do automático uma representação teatral com uma alma um tanto defeituosa.
O mais curioso é que todos os atores foram escolhidos até com um certo senso estético/social: a garota Annie é a impressionante Quvenzhané Wallis de Indomável Sonhadora, que aqui interpreta uma menina que não conhece seus pais e vive com a mãe adotiva temporária e muito mau-caráter Hannigan (Cameron Diaz). Por uma obra do destino ela vira tema de campanha do candidado a prefeito de Nova Iorque, o empresário Will Stacks (Jamie Foxx), que parece ser alérgico a pobres, preenchendo um estereótipo no início que se quebra em menos de meia hora de filme. Seus assistentes são o mau-caráter irremediável Guy (Bobby Cannavale) e a bela e simpática “Bruxa Boa do Norte” Grace (Rose Byrne, afinal alguém tem que ter bom coração nesse roteiro manipulador escrito pelo próprio Gluck e a interessante Aline Brosh McKenna).
Colocadas as peças no tabuleiro, o único objetivo de Annie é construir situações onde as pessoas cantem, o que não é necessariamente ruim, pois se trata de um musical, mas acaba se tornando decepcionante com o uso de dublagens mal feitas com uma edição de som que parece sugerir que a música surge por um processo mágico semelhante a um videoclipe ocasional na MTV.
Porém, sejamos honestos: todo o elenco está razoavelmente afiado para representar com humor e emoção a experiência da menina que encontra um novo lar acendendo o coração de um empresário “self-made man” que nunca teve a chance de ter sentimentos pelas pessoas ao seu redor. No entanto, alguma coisa fica no meio do caminho. Apesar de tudo estar nos conformes, há algo, que chamei de alma no primeiro parágrafo, que impede que o filme ganhe o ritmo necessário. Pode ser os seus cortes episódicos que emperram o ritmo da narrativa, ou uma má seleção musical, ou até mesmo uma direção preguiçosa e alheia ao destino de seus personagens. Afinal, é um musical, e as pessoas só estão interessadas nos números musicais, certo?
Bom, nem sempre. Apesar de alguns momentos inspirados em cenários com muita cor e muito som, nada faz com que Annie largue esse seu clima de Glee em algum momento e passe a se levar a sério. E se nem o próprio filme consegue se levar a sério, é porque ele constrói um universo que não vale muito a pena fazer parte, nem por duas horas.
“Annie” (EUA, 2014), escrito por Will Gluvk e Aline Brosh McKenna, a partir da peça de Thomas Meehan, dirigido por Will Gluck, com Jamie Foxx, Quvenzhané Wallis, Rose Byrne, Bobby Cannavale, David Zayas e Cameron Diaz