Quando a protagonista de As Viúvas ouve “este não é o seu mundo” de um homem, referindo-se ao mundo do crime, o subtexto não poderia ser mais claro. Mas o longa não se limita a subverter a caracterização das personagens femininas dos “heist movies”, dedicando-se também a reformular as convenções do próprio subgênero em uma obra repleta de tensão e complexidade.
A belíssima sequência de abertura de As Viúvas intercala a vida familiar aparentemente perfeita de Veronica (Viola Davis) e Harry Rawlings (Liam Neeson) com o desenrolar da ação criminosa que leva à morte não apenas de Harry, mas também de todos os seus colegas. Enquanto isso, Alice (Elizabeth Debicki) e Florek (Jon Bernthal) dividem uma manhã que até parece amorosa por trás da imagem do olho roxo dela; Jimmy (Coburn Coss) sai de casa sem mal olhar para a esposa, Amanda (Carrie Coon), e para o filho bebê do casal; e Linda (Michelle Rodriguez) e Carlos (Manuel Garcia-Rulfo) discutem (como parece de costume para o casal) sobre os problemas financeiros e a irresponsabilidade dele, que podem estar colocando a loja dela em risco.
O problema é que a explosão que matou os quatro homens levou embora também os US$ 2 milhões de dólares que haviam roubado de Jamal Manning (Brian Tyree Henry), candidato em um distrito de baixa renda de Chicago. Ele pode estar prestes a tornar-se o primeiro vereador negro do condado — seu oponente é Jack Mulligan (Colin Farrell), que espera “herdar” o cargo do pai (Robert Duvall), que acaba de afastar-se da posição por problemas de saúde.
Um retrato da corrupção e imoralidade da política que vai eventualmente entrelaçar-se com a trama principal de As Viúvas mas, inicialmente, a conexão vem do fato de que Jamal e seu irmão, Jatemme (Daniel Kaluuya), querem o dinheiro de volta a qualquer custo.
Determinada a proteger-se e a livrar-se do fardo que o marido a deixou, Veronica reúne-se com duas das outras viúvas, Alice e Linda. A ideia é que elas, mesmo sem experiência criminal alguma, concluam o que seus maridos não conseguiram terminar — aquilo no qual eles eram excelentes até não serem mais e, então, morrerem por isso. Eventualmente, as três ainda “recrutam” a determinada Belle (Cynthia Erivo), que possui algumas habilidades de que elas precisam.
Demora um pouco para que Veronica, Alice e Linda percebam que têm muito mais em comum do que só serem viúvas de criminosos; além disso, a falta de experiência pesa no início. Tudo isso faz com que haja conflitos palpáveis e complicados entre essas quatro mulheres que decidiram tomar as rédeas de seus destinos em maneiras que vão muito além de concluir a missão herdada de Harry.
A maneira refinada e multifacetada com que a co-roteirista Gillian Flynn (autora de Garota Exemplar, Objetos Cortantes e Lugares Escuros) constrói suas personagens e as relações entre elas, casa perfeitamente com o estilo elegante e cru do diretor e co-roteirista Steve McQueen. O resultado é que As Viúvas jamais reduz suas quatro personagens centrais a qualquer descrição fácil, assumindo com o mesmo orgulho suas facetas mais corajosas, empáticas ou cruéis.
Vê-las começando a confiar umas nas outras e a efetivamente se importarem umas com as outras é ver quatro mulheres deixando de lado suas próprias noções misóginas para aceitarem-se enquanto mulheres e se aceitarem enquanto mulheres em um mundo dominado pelos homens. Um mundo em que elas têm espaço para agir, porque ninguém esperaria que elas fossem capazes daquilo. Também é interessante perceber o quanto as condições particulares de cada uma delas as distanciam ou aproximam — é tocante ver Veronica e Belle, as duas únicas mulheres negras do grupo, dividindo um momento de pura compreensão e companheirismo, enquanto Linda mostra-se engenhosa quando recorre ao espanhol para conquistar a simpatia de outra personagem latina.
Para tanto, a escalação das quatro atrizes principais também mostra-se fundamental. Se Viola Davis não tem dificuldade alguma em tomar o filme para si com sua mistura intensa de agressividade, elegância e tristeza, Elizabeth Debicki rapidamente livra Alice de sua ingenuidade para transformá-la em uma personagem profundamente ferida e trágica que, aos poucos, encontra sua própria força.
E se Cynthia Erivo não precisa de mais do que alguns segundos para mostrar quem é Belle, Michelle Rodriguez estabelece Linda como a personagem mais prática do quarteto. Entre o elenco secundário, o destaque absoluto vai para Daniel Kaluuya, que abraça com intensidade o lado vilanesco de Jatemme para vivê-lo como um felino que adora brincar com suas presas antes do abate. De maneira geral, o elenco inteiro é impecável — desde Colin Farrell, investindo na covardia que impede Jack de sequer considerar seguir um caminho que não seja aquele esperado por seu pai, até Jon Michael Hill, que aparece apenas em uma cena como um reverendo especializado em moldar sua imagem de acordo com seu público (e, como fã de Elementary, que traz Hill no elenco, fiquei particularmente feliz com a participação do ator).
Mais uma vez demonstrando que é um dos melhores cineastas da atualidade, Steve McQueen imprime seu autorismo também nas sequências de ação que, no nível visto aqui, são novidade em sua filmografia. Ao lado do diretor de fotografia Sean Bobbitt (e de Flynn, que é natural da cidade), McQueen retrata Chicago como uma cidade dividida de diversas formas, seja no contraste entre o edifício luxuoso em que Veronica mora às margens do Lago Michigan e os lares das outras três mulheres, seja por meio de uma cena brilhante em que, enquanto uma intensa discussão se desenrola no interior de um carro em movimento, o diretor afasta-se totalmente do óbvio e acompanha a briga do lado de fora, como se a câmera estivesse no capô do carro. Assim, o que vemos é o contexto maior que cerca uma disputa insignificante de egos: conforme o carro aproxima-se do seu destino, a pobreza dá lugar ao absoluto conforto. O veículo percorre poucos quilômetros, mas a distância que separa esses dois universos é imensurável. Enquanto isso, a cena final inunda-se de significado pela maneira com que usa os reflexos de duas personagens — o que, aliás, remete a outros dois momentos em que cada uma delas, em situações de profundo isolamento, contemplam suas próprias imagens refletidas em uma janela.
As Viúvas é um excelente retrato de quatro mulheres complexas que se recusam a seguir o que é esperado delas em um filme como este; de serem apenas uma fonte de apoio e compreensão para os homens cruéis que moveriam a trama, aquelas que os ancorariam à humanidade em meio a uma existência de violência e medo. Ao assumirem as rédeas da narrativa, elas fazem isso do jeito delas — o filme jamais tenta encaixá-las em qualquer estereótipo ou ignorar o fato de que elas são mulheres. Quando Veronica pede a Linda e Alice que se encontrem no meio da noite para começarem a planejar o assalto, Linda anuncia que não vai ser fácil para ela, por causa de seus filhos pequenos.
São toques como esse que mostram que As Viúvas merece figurar entre os grandes filmes do gênero. Além de usar e subverter inteligentemente suas próprias convenções e reviravoltas, a obra ainda é excelente para a representatividade feminina no cinema e, ainda por cima, nos presenteia com a brilhante parceria entre Steve McQueen e Gillian Flynn.
“Widows” (EUA/UK, 2018), escrito por Steve McQueen e Gillian Flynn a partir da minissérie criada por Lynda La Plante, dirigido por Steve McQueen, com Viola Davis, Elizabeth Debicki, Michelle Rodriguez, Cynthia Erivo, Brian Tyree Henry, Daniel Kaluuya, Colin Farrell, Molly Kunz, Robert Duvall, Garret Dillahunt, Carrie Coon, Liam Neeson, Jon Bernthal, Manuel Garcia-Rulfo, Coburn Goss, Jon Michael Hill e Jacki Weaver.