Assistir a Being The Ricardos, disponível no Amazon Prime, me proporcionou uma viagem no tempo com duas escalas. Na primeira e mais óbvia, fiquei pouco mais de duas horas nos anos 1950, olhando pela fechadura os bastidores da televisão norte-americana.
No filme, Nicole Kidman e Javier Bardem interpretam o casal Lucille Ball e Desi Arnaz, semanalmente vistos por até 60 milhões de telespectadores na série I Love Lucy. A sitcom tinha como protagonistas o também casal Lucy e Ricky Ricardo. Sempre que ela tenta dar um jeito de impulsionar o sucesso do marido cubano no mundo do show business, tudo dava errado e os dois entravam em alguma confusão para delírio da plateia, de acordo com as descrições que encontrei na internet.
Transmitida às segundas-feiras das 21h às 21h30 pela CBS, a comédia semanal durou seis temporadas regulares, pouco mais de 180 episódios com duração líquida de 24 minutos cada, entre os anos de 1951 e 1957, quando passou a ter especiais de uma hora, exibidos até 1960. Em pelo menos quatro temporadas, I Love Lucy reinou como a maior audiência de seu horário.
E em Being The Ricardos, a viagem no tempo não obedece a uma ordem cronológica. Como as memórias, a trama vem e vai, mesclando depoimentos de personagens da produção, problemas conjugais de Lucille e Desi, a história de como se conheceram, o talento do casal e a coragem de bancar uma ideia aparentemente esdrúxula aos donos da emissora e patrocinadoras, além da vida conjugal dos protagonistas interferindo do sucesso ao declínio da sitcom e do delírio anticomunista colocando tudo a perder em tempos de macarthismo.
Mas foi a segunda parada da viagem a motivação para dar play neste Being The Ricardos. Nos primeiros meses do ano, tento assistir aos mais cotados para as grandes premiações e não sei onde me recomendaram a película estrelada por Kidman e Bardem. Sem saber nada do enredo, dei uma pesquisada e ao ler sobre a presença de I Love Lucy na trama, voltei para o fim dos anos 1990, começo da década de 2000.
Em preto-e-branco, a série antiga, mais velha que meus pais, passava numa emissora local de tarde, pouco antes dos filmes e novelas repetidas dos canais nacionais. Não tínhamos tevê por assinatura por que naquela época quase ninguém que eu conhecia tinha tevê por assinatura. Morávamos de aluguel num terreno com outras duas casas, os donos eram parentes e precisávamos abrir o portão, cruzar o quintal pisando em caquinhos, fazer sombra ao passar pela janela da cozinha de uma tia-avó, eventualmente desviar dos ratos que apareciam no quintal e brincar com os cachorros da infância antes de atravessar a pequena mureta que dava na nossa casa, a dos fundos.
E foi ali, na casa dos fundos, que eu conheci I Love Lucy. A culpada disso foi uma prima distante da minha mãe. Betânia (ou Bethânia?) era o nome dela. Vinda de outro estado com mala e cuia, passou meses numa das casas daquele terreno da minha infância. Em algum dia das férias, não sei como nem porque, ela conversava da sala com a minha mãe na cozinha e mudou de canal na nossa televisão de tubo, 29 polegadas, da Sony, e descobriu a exibição diária da série. E todos os dias ela via I Love Lucy na sala da minha casa.
Sem entender muito, eu e minha irmã mais nova nos divertíamos. Não com a sitcom, mas com a empolgação da Betânia. Ela ria demais das situações que só a comédia é capaz de criar. Nós riamos dela, porque uma série antiga não parecia ter graça. E gargalhávamos ao perceber que a Betânia repercutia a série falando sozinha, como se cutucasse com os cotovelos um ser invisível perguntando se ele entendeu, se ele captou a referência. Com o passar dos dias, e talvez dos meses, percebemos que não era somente na frente da televisão que ela falava sozinha, mas em todas as tarefas do dia a dia, desde colocar as roupas no varal até resolver qualquer coisa na rua. Lá estava a Betânia dialogando com o nada.
Tomei bronca da minha mãe. Não é engraçado rir de quem tem problemas na cabeça. E descobri que a Betânia nunca mais foi a mesma depois que o tempo passou e ela não conseguiu realizar o sonho da fama. Sem saber a história por completo, minha mãe contou o que sabia: a parente queria ser cantora e chegou a se apresentar no programa do Chacrinha com uma música que ninguém suportava. “O mar é feito para o jovem tomar banho” era o verso non sense mais conhecido da música de sua autoria. Betânia, com ou sem H, ganhou o troféu abacaxi diante da plateia. Na família, entre os primos da minha mãe, ninguém aguentava mais essa música.
Nunca mais ouvi falar na Betânia. Ou Bethânia. Não sei se ela está viva ou morta, se ainda canta que o mar é feito para o jovem tomar banho ou se já descansa embaixo da terra. Seu núcleo familiar não tinha tanta paciência com os risos e papos com amigos imaginários e por isso ela pingava de primo em primo, de casa em casa, como uma batata quente parental. Não é difícil entender porque minha mãe tentava ensinar que as gargalhadas do começo da tarde estavam mais para melancólicas que para engraçadas.
Quando assisti a Being The Ricardos, minha memória logo pensou nas tardes vendo I Love Lucy. Foi como se eu tivesse mordido uma madeleine.
O Tempo Perdido
Entre 1908 e 1922, o francês Marcel Proust se dedicou à escrita do projeto literário de toda uma vida. Em Busca do Tempo Perdido é uma saga que exige fôlego, paciência e nenhuma pressa do leitor empenhado em seguir até o fim. São sete livros, com as publicações originais entre 1913 e 1927, os três últimos lançados postumamente.
A obra tem mais de uma tradução para o nosso português, sendo uma das mais recentes, da Editora Nova Fronteira, com pouco mais de 2.400 páginas no total, já contando textos de apoio, prefácio e outras ferramentas para os corajosos leitores não se sentirem perdidos no meio desse caminho interminável. Nela, o percurso da detalhada reflexão sobre a passagem do tempo, a vida e as relações, o amadurecimento e as escolhas, a sexualidade e outras questões profundamente humanas é formado por No Caminho de Swann, À Sombra das Moças em Flor, O Caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Recuperado.
Tentei ler essa epopeia e parei na metade do terceiro volume. Talvez eu ainda não estivesse preparado ou no clima para completar a missão. Devo retomar, desde o início e sem pressa, com a ajuda de um desses serviços de empréstimo de livros digitais. Mas foi logo no começo do primeiro calhamaço – e é bom ressaltar que o “começo” de uma obra com mais de duas mil páginas é um conceito amplo – que cruzei com a famosa passagem das madeleines.
“(…) levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. (…) De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? (…) De onde vinha? Que significaria? (…)”.
É a partir desse trecho que Marcel, o narrador, rememora sua trajetória desde antes da formação plena como escritor. A madeleine é um pequeno biscoito, ou um bolinho, com formato de concha. Originalmente, é feita com ovos, raspas de limão e mais uns ingredientes clássicos. Mas foi eternizada por Proust pela alusão às memórias, mesmo aquelas esquecidas embaixo dos tapetes que escondem lembranças detestáveis.
Assistindo a Being The Ricardos, foi como se eu tivesse mordido uma madeleine e voltasse àquela casa da infância, lembrando bons e maus momentos, risos e lágrimas, das primeiras vezes andando de bicicleta aos motivos que nos levaram a sair de lá.
Efeito Madeleine
Remakes, reboots e retcons me fazem pensar num “efeito madeleine”. Recriam, refazem ou continuam produções antigas, nem sempre carregando grandes preocupações com coerência, qualidade ou mesmo bom senso ao ressuscitar defuntos bem enterrados e visitados de tempos em tempos pelos cinéfilos. Parece mais importante fazer o espectador morder o biscoito em formato de concha e capturá-lo pela memória, alimentando a nostalgia por um tempo em que nem tudo era melhor, mas éramos mais jovens. Se a madeleine for saborosa, tudo bem.
Penso nisso ao falar com amigos encantados com Cobra Kai. Uns dizem que a série é ruim, outros garantem que a sequência dos Karatê Kid é maravilhosa. Críticos e entusiastas seguem episódio a episódio, falando mal ou exaltando o caráter de cada personagem. Enquanto uns adoram com todas as forças cada nova temporada, outros amam odiar as péssimas atuações e o roteiro destrambelhado – só repito o que me dizem, eu nunca assisti. Nos dois casos, referências aos filmes dos anos 1980 são usadas para justificar a má vontade com este ou aquele caminho tomado pelos protagonistas. Nos dois casos, a memória afetiva parece crucial para quem deseja seguir em frente, gostando da trama ou se revoltando com a falta de pureza em relação à obra original.
Os biscoitos da memória ressurgem por aqui a cada novo blockbuster de super-heróis, com a “melhor bilheteria de todos os tempos até agora”, imediatamente qualificado como “melhor filme do ano” pelo tribunal de fãs histéricos das redes sociais. Nem me arrisco a falar mal das produções cheias de efeitos para não ser condenado sem direito a recurso. Quando confesso meu pouco interesse por essas películas, sou encarado com a reprovação de quem enxerga o diabo em forma de gente e a pouca distância. Esse forte apego à memória também parece importante nas dezenas de filmes que precisam ser assistidos numa sequência exata e exigem nossa permanência na poltrona mesmo após as letrinhas pequenininhas ao fim da sessão. Cada lançamento vira grande evento social, como festa de aniversário da alta sociedade. Os mais sábios entendem as referências aos quadrinhos desta ou daquela fase do super-herói e olham os meros mortais de cima para baixo. Nas vezes em que me desloquei ao cinema para assistir a um desses lançamentos, me senti fora de órbita, como se não tivesse feito a lição de casa por não ter lido o manual de instruções. Fiquei sem saber em que ponto estava a história com pessoas em uniformes coloridos fazendo o possível e o impossível para salvar o mundo. É preciso cultivar a memória para lembrar filme a filme e aproveitar a experiência completa. E não vale dizer que não gosta, que não curte, que não é a sua praia, sob o risco de ser condenado por elitismo e desconexão com os novos tempos, chatice ou exigência acima do tom.
Quando me pergunto se o apelo à memória não pode virar uma quase desculpa para invalidar críticas negativas, tão comuns e saudáveis para qualquer segmento, não tenho respostas prontas.
Memórias
007: Sem Tempo Para Morrer foi o primeiro filme a que assisti num cinema desde o começo da pandemia. Antes disso, vi ou revi todas as produções estreladas por Daniel Craig. Só voltando para casa me dei conta das referências a Proust no meio de uma história cheia de ação e vilões caricaturais. Madeleine Swann (Léa Seydoux), com quem James Bond teve um relacionamento e, descobre-se depois, uma filha, evoca memórias para o agente secreto. Como a madeleine mordida em No Caminho de Swann.
Fui sozinho à locadora e peguei a fita de A Múmia. Por telefone, meu pai tinha feito a reserva do filme desejado. Chegando lá, o dono avisou que eu poderia escolher entre dublado ou legendado. Metido a inteligente, escolhi a versão com letrinhas amarelas no meio da tela. Fiquei de castigo e precisei ler as legendas do início ao fim para minha irmã mais nova e não-alfabetizada.
Passei uma tarde de sábado assistindo a …E o Vento Levou no apartamento da minha tia. Nunca mais esse filme passou na tevê aberta e meus pais devem ter agradecido à Globo por ter me distraído, enquanto resolviam problemas de adultos e falavam com familiares sobre uma tia que tinha sofrido um AVC e passou anos deitada numa cama antes de morrer.
Cheguei da casa dos meus padrinhos no domingo da final do Campeonato Brasileiro de 1998, disputada entre Corinthians e Cruzeiro. Meu pai assistia à tevê no quarto e eu quis assistir a O Chacal na televisão da sala. Minha irmã mais velha pediu para eu esperar. Eles tinham visto o filme quando eu não estava em casa e combinaram de nos juntarmos no único videocassete assim que a partida acabasse. Despertar de um Pesadelo tinha sido a outra escolha na locadora no dia anterior. Eu deveria assistir à produção com Bruce Willis no dia seguinte. Fiquei bravo, teimei como criança mimada, dei play na televisão da sala e meu pai não viu o segundo filme escolhido.
Sylvester Stallone era o sonho de consumo da minha tia. Na casa dela, lembro ter visto pela primeira vez Stallone Cobra, Falcão: O Campeão dos Campeões, Tango e Cash, Pare! Senão Mamãe Atira, Rocky V, O Demolidor, O Especialista e Day Light. Na minha casa, quando assisti a O Juiz, D-Tox e Alta Velocidade, imaginei meu pai dizendo que o Stallone era um brocha que precisava de uma bombinha para ter ereções, com minha tia se fingindo de brava e pedindo para seu irmão para de falar besteira só para provocá-la, como acontecia regularmente aos finais de semana. Ao fim de Os Mercenários e Creed, tive dúvidas se minha tia ainda era fã do Stallone.
Minha irmã mais nova quase chorou, implorando para assistir a Xuxa e os Duendes. Minha madrinha prometeu levá-la num falecido cinema no centro da cidade e, com medo de eu ficar enciumado, me carregou junto. Tive receio de ser visto pelos moleques da escola entrando na sessão de um filme da Xuxa. No fim das contas, minha madrinha pagou pipoca e refrigerante e eu não lembro nada do filme.
Quando vejo referências a Coringa, penso neste como o último filme que assisti no cinema antes do início da pandemia. Eu estava desempregado e saía com uma garota que implicava com minha excessiva preocupação em conseguir trabalho. Quando saí do cinema e a deixei em casa, encontrei um dos meus melhores amigos na saída de seu trabalho para tomar cerveja e pôr fim numa briga de anos. Bebemos, rimos e nunca mais nos falamos.
O Filme da Minha Vida e Sócrates são dois filmes brasileiros que vi no cinema, acompanhado. Quando eu era adolescente, me ressentia porque não conseguia levar nenhuma garota ao cinema. Depois de assistir a estes filmes e passar boa parte deles explicando o que tinha acabado de aparecer na tela, aprendi duas lições importantes: ir ao cinema sozinho pode ser a melhor escolha para quem deseja ver filmes e quem gosta de pegação nas poltronas não se interessa pelos filmes, quase sempre são adolescentes inseguros.
O Tempo
Nunca comi uma madeleine e é possível que eu até tenha me encontrado com essa iguaria em algum lugar especializado na fabricação de doces antes de tentar ler Em Busca do Tempo Perdido. Não a reconheci porque ainda não tínhamos sido apresentados.
Mas sou viciado em bolachas doces e sem recheio. Pode chamar de biscoito, a depender da região em que minha droga é vendida. Vou ao mercado e trago de embalagens de variadas marcas e sabores para comer durante e depois do meu expediente caseiro em frente ao notebook. Dessas, as únicas capazes de me evocar o “efeito madeleine” são aquelas vendidas em potes de alumínio, com seu gosto de infância e preço pouco convidativo em tempos de inflação insone.
Curioso pensar no quanto cada diferente mordida numa madeleine, ou nos biscoitos vendidos em latas de alumínio, pode trazer ângulos diferentes de um mesmo acontecimento. Porque a memória é permanentemente refeita e mesmo o passado pode ser reconstruído e reinterpretado dentro das nossas cabeças. Num país que pouco faz para preservar a própria história, com a pressa das redes sociais apontando o melhor filme de todos os tempos de seis em seis meses, esse apelo constante ao passado pode ser bom para evitar esquecimentos. E melhor ainda para faturar bem com bilheteria.
Eu, mesmo: só lembrei a existência da Betânia (ou Bethânia) porque o Being The Ricardos atravessou meu caminho com menos cerimônia que I Love Lucy fez há vinte anos ou mais. E é possível que a história da Betânia, aqueles anos, o canal que passava o seriado, seu horário de exibição… É possível que tudo isso tenha sido distorcido dentro da minha cabeça com o passar do tempo e não tenha acontecido assim, dessa forma, desse jeito, com esses detalhes contados linhas acima.
Vida longa à memória, vida longa às madeleines, às bolachas e às histórias. Mesmo as ruins, mas com um sabor doce demais para facilitar a digestão dos ouvintes.