Fazer um estudo de personagem no cinema é sempre uma tarefa árdua. Fazer um estudo de personagem sobre um vilão execrável é algo mais complicado ainda. Fazer um estudo de personagem sobre um vilão execrável, mas que é uma das figuras mais conhecidas da cultura pop, beira a loucura. Coringa é, justamente, sobre loucura.
Não sobre um personagem que é levado à loucura por um sistema à la Travis Bickle em Taxi Driver, mas sim alguém já maluco desde sempre. Não existe sequer um momento em Coringa em que o personagem seja enxergado como alguém dentro da normalidade esperada pela sociedade. O problema, no caso dele, é que a sociedade apodreceu no mesmo ritmo.
A Gotham City desse Coringa começa com o 18° dia de greve dos lixeiros, o que é uma metáfora nada velada para a podridão que toma as ruas. Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) é um palhaço que ganha a vida rodando placas na frente de lojas e sonhando com a carreira de comediante. Isso enquanto cuida da mãe delirante e doente (vivida por Frances Conroy).
Mas Arthur é apresentado como essa figura quebrada, que força um sorriso com a ponta dos dedos enquanto uma lágrima mancha a maquiagem. A loucura nos olhos não permite que ninguém no cinema se aproxime dele, muito pelo contrário, observe com distanciamento a destruição gradativa desse homem. Sua transformação em um monstro que nunca esteve em lugar algum que não fosse o reflexo distorcido dessa felicidade forçada pelo gesto dos dedos.
O retrato triste de um sorriso vazio, mas o mesmo sorriso maluco que cresce dos lábios enquanto ele é espancado em um beco. Todd Phillips não desvia sua câmera desse olhar e te convida para seguir nessa jornada. Arthur está quebrado, se arrasta pelas ruas e sobe uma grande escadaria como se carregasse consigo o peso de um mundo inteiro. Tudo parece ser mais difícil para o personagem, é a loucura que o liberta.
E isso tem a ver bastante com o visual criado por Mark Friedberg (do incrível Sinedoque, Nova York) e Laura Ballinger (que fez um trabalho incrível na série The Knick), que são o coração desse filme ao construírem uma Gotham City realista demais. Tudo ali é vivo, amontoado, cheio de personalidade e de uma paleta de cores que fica entre o morto e o depressivo. Não existe vida em Gotham. Todd Phillips sabe muito bem disso e dá espaço em seu filme para que o espectador enxergue isso em cada plano. Assim como perceba o quanto o Coringa quebra isso tudo.
Quanto mais Arthur se transforma nessa figura odiosa, mais ele vai se destacando visualmente dentro desse mundo. O branco da máscara inspirada nele quebra o visual, já que até aquele momento nem o branco era branco, ficava mais no campo do bege. O Coringa é a quebra desse mundo, o reflexo de uma sociedade fracassada, mas um reflexo intoxicado pela loucura. A violência do Coringa se dá muito mais no incômodo de perceber o quanto o personagem se descobre à vontade com ela.
Depois de um dos crimes, Arthur baila em um banheiro enquanto enxerga a própria imagem em um espelho, não existe beleza na cena, nem no banheiro sujo, nem na maquiagem borrada e muito menos nos passos débeis. Só existe selvageria e insanidade. A poesia e a beleza não estão naquela realidade, mas sim no esforço estético de Phillips de mostrar essa figura se quebrando. A beleza não está no “belo” (aquele clássico), mas sim em seu oposto.
A transformação completa se dá, justamente, pelas cores. Um novo homem, quase uma criatura, mas que é a única coisa que destoa do visual de Gotham City. Não um vermelho, mas sim um roxo, quase bordô, e o verde. O primeiro remetendo à violência, o segundo lembrando algo podre, mofado, esquecido. A pintura branca é a máscara que precisava para esconder Arthur e deixar livre o Coringa.
Não a evolução de um personagem, não existe celebração dessa mudança, mas sim o retrato de alguém que apanhou com tanta fúria do sistema ao seu redor, que permitiu que sua loucura enclausurada, e que se manifestada através de uma risada descontrolada, viesse à tona. Phillips assina o roteiro com Scott Silver e vão buscar a inspiração clara na obra de Alan Moore, A Piada Mortal. Por mais que o Coringa ache que foi um “péssimo dia” que o deixou daquele jeito, é a dor e a fúria de uma vida inteira que culminam naquele momento.
O mundo bate com tanta força em Arthur que ele precisa se esconder por trás de seu Id, já que seu ego e seu superego foram estraçalhado por seu passado. O Coringa é altivo, caminha como se estivesse sobre as nuvens, não parece quebrado, dança enquanto desce as escadarias e ri das autoridades. O Coringa é seu limite ultrapassado, como se nunca tivesse existido um Arthur, mas sim apenas um escudo para que o Coringa não existisse.
Essa loucura que o liberta nunca é enxergada por Phillips como algo celebrável, até os momentos de maior delicadeza e leveza são perdidos diante do ódio e da violência que forja essa figura. O riso na cena com seu amigo anão é quase algo incômodo para o expectador, como se não se permitisse achar engraçado uma cena diante de um crime tão hedionda. Phillips faz um filme onde você irá pensar a respeito do que achou engraçado, e isso é sempre o cerne do personagem em suas melhores versões.
Mas é lógico que todo esse peso não funcionaria sem o trabalho espetacular de Joaquim Phoenix. O ator vem de um trabalho igualmente estarrecedor em Você Nunca Esteve Realmente Aqui, filme de 2017 que foi ignorado por muita gente, mas serve agora perfeitamente bem de contraste com seu trabalho em Coringa. Não só pela mudança de peso, que deve ficar na casa de algumas dezenas de quilos, mas, principalmente na intensidade e em como entende o personagem. Da apatia poética e silenciosa do outro filme, vem agora (em Coringa) o caos desconfortável. É fácil não querer nem olhar para esse Arthur/Coringa criado por Phoenix.
A criação passa obviamente pelas risadas diferentes, mas também pelo trabalho corporal que cria dois personagens distintos. O Coringa nunca é Arthur, esse, por sua vez, em momentos delirantes (ops… pequeno spoiler) se vê com a confiança do Coringa, o que, automaticamente faz com que seu corpo fique mais ereto e seguro. Mas talvez mais que tudo isso, Phoenix cria um olhar por onde Phillips e sua câmera conseguem identificar o personagem. Algo que beira a insegurança no começo, mas se transforma em selvageria e em uma lucidez tão grande que mais parece loucura.
É através dessa loucura que surge o Coringa, mas também é através dela que Gotham encontra sua característica mais caótica. Da insanidade do Coringa, dos escombros desse ódio e dessa violência é que nasce a Gotham City doente, e a gente sabe muito bem quem é a cura.
Todd Phillips cria um Coringa, mas ao mesmo tempo faz nascer uma Gotham e abre espaço para um Batman que faz sentido dentro desse cenário. Coringa, Gotham City e Batman nascem de uma mesma substância, reações diferentes a um mundo que não se cansa de bater em cada um dos três.
Fazer um estudo de personagem sobre um dos maiores ícones da cultura pop é difícil, Todd Phillips faz ainda melhor, um estudo de personagem que finge ser de um personagem, mas é de uma mitologia inteira.
“Joker” (EUA, 2019), escrito por Scott Silver e Todd Phillips, dirigido por Todd Phillips, com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp, Glenn Fleshler e Leigh Gill