Uma rápida procura em qualquer mecanismo de busca da internet te levará à descoberta que “Folie a Deux”, nome original da continuação Coringa – Delírio a Dois, é o nome popular de uma condição também conhecida como Síndrome Lasègue-Falret, que chega perto do título em português, mas vai mais longe: quando duas ou mais pessoas compartilham de um estado de loucura ou ilusão.
Apostando nessa ideia, o segundo Coringa dirigido por Todd Phillips parece ter a certeza absoluta que tem uma história que precisa ser contada. Mas não tem. Se equilibrando sobre um fiapo de trama que engana por fingir ser profunda, mas que não sai do lugar em momento nenhum, tem pouco ou nada de novo e só quer mesmo aproveitar o sucesso do primeiro (ou, pelo menos, para explicar algumas coisas que o pessoal não entendeu!). Mas talvez isso seja um exagero, afinal tem as canções e números musicais.
Delírio a Dois nasce como um musical, o que traria uma nova camada para a ideia inteira. Talvez então seja o ponto que salve o filme de um destino ainda mais esquecível. Sem as músicas, “Coringa 2” é apenas um filme chato, pouco provocativo e que corre sem sair do lugar. Com as músicas, “Coringa 2” é um filme chato, pouco provocativo e que corre sem sair do lugar, mas com ótimas canções.
As músicas deslocam Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) de seus dias no hospital/prisão de Gotham City (Arkham). Phillips faz com que os guarda-chuvas pretos e sem graça dos guardas sejam coloridos quando a câmera os enxerga pelo alto. Fleck parece entorpecido pelos dias inacabáveis enquanto espera por seu julgamento e tenta emplacar, junto com sua advogada (Catherine Keener), a ideia de que o Coringa é uma personalidade que toma conta dele, o que tiraria de Fleck a culpa pelos crimes do primeiro filme.
É durante um desses encontros que Fleck encontra Lee Quinzel (Lady Gaga), uma interna que parece estar lá apenas para encontrar Fleck… ou melhor, o Coringa. A ideia faz parte da trama, essa busca dela por fazer com que essa personalidade do palhaço seja a única e permaneça como símbolo midiático de uma sociedade falida. Do mesmo jeito que muita gente fora do primeiro filme entendeu tudo errado e celebrou o psicopata, o segundo filme enxerga o mal que isso faz para aquela sociedade que celebra essa figura mórbida.
Mas enquanto o roteiro escrito pelo diretor em parceria com Scott Silver tem claramente essa intenção, parece fazer pouco para tornar isso narrativamente funcional. O acerto deles está justamente no lugar mais longe disso. No delírio. Na maluquice. Na realidade sendo quebrada e remendada.
Delírio a Dois é um musical com jeitão de clássico, onde as canções podem nascer para transformar diálogos menos intensos em segmentos divertidos e os números mais complexos se deixam ser o delírio em si. Onde o casal de protagonistas se permite dançar através da realidade enquanto parecem estrelar um daqueles programas de auditório americanos dos anos 60 e 70 com casais (apresentadores) dançando e interagindo com o público. E quanto mais Phillips se permite mergulhar nesses delírios, mais o filme funciona. É o resto que estraga.
Ainda que as canções estejam no lugar perfeito que deveriam estar, com suas letras tendo algo a dizer, quando não estão lá, o que sobra são conclusões óbvias e fracas. Não existe a possibilidade de achar que o plano da advogada daria certo, muito menos qualquer chance de o julgamento do Coringa se tornar algo que não seja minimamente um circo. Portanto tão previsível quanto o momento onde Fleck pira de vez, demite sua advogada e passa a se defender sozinho. Afinal esse seria o único jeito do personagem ter mais falas durante quase metade do filme.
Mas onde está Lee Quinzel nesse meio tempo? Por lá. Um pouco no “delírio a dois”, um tiquinho cantando bem (culpa da Gaga), fingindo estar apaixonada por esse completo maluco psicopata e ganhando uma espécie de fama enquanto “vende” para o grande público a ideia dela ser a “namorada do Coringa”. Em todos esses momentos o filme tenta discutir essa fama maluca dentro da exposição dos crimes do Coringa, mas não chega nem perto de encontrar essa profundidade toda dentro da personagem. Quando o espectador menos espera, Quinzel toma algumas atitudes que pouco ou nada combinam com essa construção e se deixam ser carregadas por fragilidade da personagem que não cabe nela.
Sua luta para transformar Fleck no herói de uma cidade não aguenta nem um simples “não” e enquanto o resto de seus seguidores continuam lutando por essa revolução sem perspectiva sã, ela apenas desiste. Phillips não só trata a personagem com um enorme desrespeito, como a deixa refém de uma reviravolta sem qualquer tipo de criatividade. Pior ainda, o resto do tempo de Delírio a Dois a trama ruma para uma lição de moral mesquinha e que não deixa o filme crescer sem uma espécie de moralismo meio bobinho.
Enquanto o primeiro era corajoso e não tinha medo de construir uma solução que desagradaria e incomodaria diante da frieza e da ambiguidade, Delírio a Dois só tem um lado, o de que Fleck sabe o psicopata que se tornou e não deixa espaço para nenhuma outra possibilidade minimamente complexa. Se ele se torna um símbolo ou uma ideia, sua origem é emocionalmente frágil e aceita um destino que o liberta dos erros. Seu olhar para a câmera no final não é de enfrentamento ou loucura, mas quase de paz, como se o filme tentasse liberá-lo de seus erros e livrá-lo de seu legado sombrio. O que vai de encontro a todo resto do esforço de Phillips de condenar o personagem.
Mas mesmo meio mequetrefe em suas intenções, Delírio a Dois é um presente para seus dois protagonistas. Phoenix parece mais uma vez se perder por trás do personagem, seja física como emocionalmente. Já a Gaga estrela pop some e dá lugar a essa mulher realista e que deixa a impressão de que a atriz faz qualquer de seus trabalhos no cinema ser algo fácil e simples, mas com um poder que exalta sua personagen, mesmo vítima de um roteiro pouco inspirado na hora de motivá-la.
E quando a direção de Phillips percebe esse poder de ambos, deixa o filme livre para eles brilharem. Se os dois são incríveis, o que está ao redor deles compõe um mundo que vive para eles e para as intenções visuais do diretor fazerem sentido. Não tão ligado à época de suas canções, mas em um lugar meio preso no tempo que enxerga nelas a nostalgia de dias melhores e onde o amor poderia ser cantado nas letras dessas músicas românticas e que entraram para a história por suas delicadezas e paixões.
Coringa: Delírio a Dois não é um filme sobre amor. É muito mais sobre esses personagens que se perdem nas próprias obsessões e possibilidades de passar por cima de seus erros. Mas no final das contas nada disso é muito explorado e tudo se contenta em ser montado para uma única frase que grita algo óbvio. O que vem depois é imprevisível, pois é uma mistura de Deus Ex-Machina com preguiça. Uma explosão dentro da realidade que permite que Fleck seja perseguido por seu legado, mas algo que dura tão pouco que nem permite que essas intenções sejam realmente discutidas. O que é chato, porque ninguém gosta de desperdício.
Fleck e Quinzel não se importam com isso, afinal estão sendo enganados pela realidade que os cerca dentro desse delírio, mas Phillips deveria perceber isso a tempo de não deixar que seu filme chegasse nesse lugar entediante e preso a suas convicções de que está fazendo algo muito maior do que realmente é. Falta enxergar isso. Falta se deixar levar pelo mesmo delírio do casal em vez de ficar tentando explicar algo que já estava muito claro. Pelo menos para aqueles que entenderam o primeiro filme e não ficaram por aí celebrando o personagem como se ele fosse um herói.
É uma pena que Phillips tenha que fazer um filme inteiro para explicar isso e erre tão feio.
“Joker: Folie à Deux” (EUA, 2024); escrito por Todd Phillips e Scott Silver; dirigido por Todd Phillips; com Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Brendan Gleeson, Catherine Keener, Zazie Beetz, Steve Coogan, Harry Lawtey e Leigh Gill