Parece clichê dizer que “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, principalmente se levarmos em conta a carreira de Quentin Tarantino. Também seria um erro apontar isso como um defeito, já que, bem pelo contrário, essa reciclagem é ponto alto, não só de seus sete filmes anteriores, como de seu novo Django Livre.
Como o próprio nome sugere, Tarantino agora deixa de dialogar com o faroeste (como fez em Kill Bill: Vol. 2, e até com o “mexican stand-off” que resume Bastardos Inglórios) e vai de encontro a essa história que, na verdade, é quase um “pré-western”, já que acontece dois anos antes da Guerra Civil que serviu de modelo para diversos pistoleiros rápidos no gatilho. E não, esse Django nada tem a ver com aquele vivido por Franco Nero na década de 60 (ainda que o próprio tenha uma “amigável participação” em certo momento do filme), na verdade o Django de Tarantino é um novo herói “com o ‘D’ mudo”.
Ao invés de arrastar um caixão pelos áridos cenários do oeste americano, esse Django (Jammie Foxx) é um escravo que acaba tendo seu destino cruzado por um tal de Dr. King Schultz (Christoph Waltz), um caçador de recompensas que o liberta dos atuais donos e ganha uma proposta: ajudá-lo a pegar três assassinos procurados e, no final das contas, sair com a liberdade e o bolso cheio de dinheiro.
Mas no caldeirão de referências de Tarantino, a relação dos dois evolui então para uma espécie de salvamento da esposa de Django, Bromhilde Von Shaft (Kerry Washington), que ganha o nome através da criação de uma família alemão na qual trabalhou e foi criada. O diretor então embarca em uma aventura épica para salvar a amada do herói que, assim como a lenda oral germânica (que serviu em parte para a canção/poema O Anel do Nibelungo), está presa no alto de uma montanha guardada por dragão. Na verdade, Candyland, uma enorme fazendo no Mississipi e “monsieur” Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), “empresário” do ramo de “mandingo”, uma espécie de luta entre escravos negros.
Com isso em mãos, Tarantino tem o cenário perfeito para mais uma inesquecível história de vingança e uma crítica absolutamente nada velada a toda imbecilidade escravista no período histórico. Tudo isso embalado (obviamente) por um faroeste sensacional e que, visualmente, é um deleite de homenagens e situações que, como era de se esperar, automaticamente, entram para o imaginário cinematográfico de sua geração.
Mais que isso, Tarantino tem um enorme cuidado e carinho para criar esse personagem, esse pistoleiro que vai de “escravo fujão” a herói cavalgando em direção ao horizonte com sua amada. Assim como cria esse divertidíssimo caçador alemão apresentado (tanto para Django quanto para o espectador) através de um trabalho em um bar de uma cidadezinha qualquer e que mostra o quanto se pode esperar do surpreendente Django Livre.
Surpreendente, pois, logo de cara, foge do esquema não linear das obras do diretor e vai de encontro, talvez, a sua obra menos celebrada, Jackie Brown (além das obvias referências Blaxploitation). Sem nenhuma divisão narrativa, o faroeste se move em uma linha reta, o que lhe permite explorar sua veia “spaguetti western” (aquela época em que os italianos dominaram a produção de foroestes), muito mais em termos visuais (nos zooms, os flashbacks, os vários planos detalhes nas armas sendo engatilhadas etc.) do que narrativos, mas ainda assim uma homenagem óbvia e deliciosa.
Em termos narrativos, Django Livre é um “filme de Quentin Tarantino” e ponto final, já que é a tentativa de desconstruir a trama de faroeste clássica com a presença de um herói Blaxploitation em um cenário que não está preparado para isso.
E se não através de capítulos ou intervenções narrativas, com certeza com a ajuda de um punhado episódico de sequencias e diálogos (e monólogos) que criam uma experiência riquíssima e absolutamente esforçada em divertir o espectador. Do divertidíssimo segmento (quase como um capítulo) em que a dupla de protagonistas acabam cruzando com um grupo de encapuzados pouco simpáticos aos negros (que ainda conta a deliciosa participação do Miami Vice Don Johnson), até o espetacular discurso do vilão “monsieur” Candie, Django Livre é essa sequencia de surpresas prontas para virarem referências pop para as próximas gerações.
Mas sobre tudo isso, Django Livre ruma mesmo para uma clássica vingança “tarantinesca”, que muito bem trabalhada e desenvolvida durante todo filme culmina em um terceiro ato arrasador e com um tiroteio que já pode calcar seu lugar nos anais da sétima arte. E é absolutamente interessante perceber o quanto Tarantino move essa trama para a ascensão desse herói no meio de um monte de corpos de capangas ao mesmo tempo em que coloca o simpático Dr. Schultz como o verdadeiro grito de liberdade de toda injustiça da situação histórica.
Isso, lógico, graças também a mais um trabalho sensacional de Christoph Waltz (que levou um Oscar em Bastardos Inglórios, também com Tarantino), mas, no mesmo peso, pela atuação impecável de Leonardo DiCaprio que, pela primeira vez em sua carreira ganha de presente um vilão tão pertinente (e pronto para ser odiado), dentro de um filme tão pertinente como esse.
DiCaprio, que definitivamente se mostra capas de sair completamente de um status quo heroico de sua carreira e quebra um paradigma (talvez, curiosamente, como Sergio Leone fez com Henry Fonda em Era Uma Vez no Oeste) que, definitivamente, abre portas para uma carreira que ainda tem tanto a dispor. Uma habilidade de tornar diferente e importar essa ou aquela referência e criar um resultado inesperado, que até pode ser exagerado, porém cheio de personalidade e que Tarantino consegue como poucos. Realmente uma prova substancial de que Lavoisier e sua Conservação das Massas estava correto, já que nada mesmo consegue ser criado sem ser de algo previamente existente, ainda que termine por se transformar em alguma coisa completamente diferente, como Django Livre.
Django livre(EUA, 2012) escrito por Quentin Tarantino , dirigido por Quentin Taratino , com Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington, Samuel L. Jackson e Laura Cayouette.