O cinema não está em crise, o que está em crise é o mundo, diante de um capitalismo desenfreado que não permite mais que a arte seja feita somente por ela mesma. Uma realidade onde os orçamentos, cachês e lucros criaram uma pressão tão grande que os filmes são menos importantes do que seus números.
Tudo bem, parece romantismo demais não relacionar cinema com dinheiro, já que talvez ele seja a arte mais ligado ao dinheiro que a história do planeta Terra já viu. É possível criar qualquer tipo de arte com uma quantidade mínima de dinheiro, ou até com nenhum, mas o cinema não. É preciso gastar para filmar e mais ainda para o que vem antes e depois de apertar o REC. E sem lucro, não existe cinema que sobreviva.
A sétima arte nunca sobreviveu apenas de respeito, celebração e reconhecimento. Portanto, fingir que o dinheiro não move o cinema é uma bobagem. Porém, o puro pragmatismo é burrice. Quando tudo é dinheiro e a “régua” precisa levar em conta o quanto de dinheiro aquela produção ganhou ou ganharia para aceitar sua qualidade, o resultado é perigoso.
Mas o problema pode ser maior do parece. Principalmente em termos de responsabilidade.
Depois de dois sucessos de público e crítica, Robert Eggers saiu do guarda-chuvas da “pequena” A24 para criar seu épico viking de US$ 70 milhões O Homem do Norte. Era a oportunidade de ver o cara que assinou A Bruxa e O Farol agora sair do terror e atingir o “cinemão comercial”. O resultado foi um fracasso e o filme não chegou nem a “bater” o seu “budget” por meio da venda de ingressos.
Eggers não economizou, nem no tamanho de seu filme, muito menos na possibilidade de criar um filme “mais fácil” de ser consumido pelo grande público. O filme é mais complexo, menos mastigado e visualmente excêntrico o suficiente para ficar até mais perto dos seus filmes anteriores do que de qualquer possibilidade de se tornar um filme que empilhasse potes de pipoca.
A impressão que fica é que O Homem do Norte poderia ser feito com muito menos dinheiro, principalmente se levar em conta o possível salário pago por alguns dos atores do elenco. A irresponsabilidade do estúdio não está em tentar dar mais dinheiro nas mãos de um dos diretores mais importantes de sua geração, mas sim em aceitar que uma supervalorização de certos gastos seja possível.
Mas é difícil afirmar uma coisa como essa, afinal, os acordos com as estrelas do elenco quase sempre são mais complexas do que um cachê, envolvendo participação nas bilheterias, crédito de produção etc. Então é preciso ficar apenas na suposição.
“Here” novo filme de Robert Zemeckis (aquele mesmo de De Volta Para o Futuro) é a adaptação de uma HQ que tinha como premissa a ideia de contar a história inteira de um lugar. Um ponto de onde não sai a câmera e acompanha, desde os dinossauros, até a construção dessa casa onde acontecem os amores, problemas e dores dessa família. Um filme que poderia ser realizado com muito mais criatividade e arte do que dinheiro. Apenas uma câmera fixa olhando a ação acontecer e criar essa intimidade com espectador. Mas não é isso que aconteceu. O resultado…
O filme de Zemeckis custou US$ 50 milhões. Talvez graças ao monte de efeitos especiais e CGI ou até em razão do elenco com Tom Hanks, Robin Wright e Paul Bettany. Colocando como ponto de partida que a boa e velha conta do lucro em Hollywood exige que um filme ganhe três vezes seu orçamento para ter lucro, imagine que um dramalhão com uma câmera fixa pudesse render US$ 150 milhões beira a inocência de uma indústria que, aparentemente, não entendeu o tamanho do cenário que tem em mãos. “Here” fez US$ 6 milhões no primeiro final de semana. O que o coloca já como um dos maiores fracassos do ano.
E se é difícil imaginar que eles “aparentemente, não entenderam o tamanho do cenário que tem em mãos”, isso parece ser surpreendentemente verdade. A maior indústria de cinema do mundo parece perdida enxergando apenas a possibilidade matemática de seus esforços. Um diretor famoso e ganhador de Oscar, mais um dos atores mais famosos de sua geração, com um filme cheio de efeitos especiais e que juntava novamente “o pessoal de Forrest Gump”, seria igual a centenas de milhões de dólares. Mas pergunte para qualquer especialista no assunto que ele lembrará que os nomes nos cartazes já não garantiam grandes bilheterias desde muito tempo, o que piorou ainda mais diante da popularização dos serviços de streaming.
A primeira vítima disso pode ser o derradeiro filme de um dos nomes mais importantes da história do cinema, Clint Eastwood. Seu mais novo filme, “Juror #2”, diante dos fracassos de gente como “Here” e Megalópolis (a gente já chega nele!) pode acabar indo parar diretamente no Max (streaming da Warner). Sim, talvez o último filme do nonagenário Eastwood, aquele mesmo cheio de Oscars e que transformou o cinema algumas vezes em sua vida, vai direto para o sofá da sua casa para não ter perigo de ser um fracasso de bilheteria.
Mas quem disse que o cinema e a oportunidade de ver esse “canto do cisne” nos cinemas teria que ser movido ou não pelo monte de pipocas que ele poderia vender? A resposta é fácil: justamente aquele capitalismo desenfreado que faz de tudo para resumir a arte mais popular da história da humanidade em cifras.
É lógico que ainda há quem lute contra isso. Apple TV+ e Netflix bancaram os projetos megalomaníacos (no melhor dos sentidos) de Martin Scorsese, permitindo que os filmes passeassem pelos cinemas sem muita preocupação, já que valorizariam suas marcas para o resto da vida. Posso estar sendo ingênuo pensando que esses estúdios estão “fazendo o bem”, mas é o que nos sobra em termos de esperança.
A esperança também vem de momentos como Megalópolis, épico maluco de Francis Ford Coppola que custou US$ 120 milhões do bolso dele. Sem estúdios e sem ninguém bancando, usando o dinheiro da venda de uma de suas vinícolas para bancar a produção. A gente sabe que Coppola deve ter comprado sua propriedade com o lucro de algum outro filme seu bancado por algum estúdio, então sem ingenuidade nesse momento, mas, mesmo assim, é um esforço que se indispõe com o “status quo” de Hollywood. Na verdade que olha para eles e dá de ombros.
Hollywood chegou em um momento onde se tornou refém do próprio dinheiro que criou. As décadas e décadas de bilheterias crescentes criaram uma seita de engravatados que parecem não olharem mais para aquela arte lá do começo do texto. Os grandes cineastas estão, cada vez mais, se separando em duas categorias: aqueles que aceitam o grande mercado e seus valores irreais de um lado, do outro, quem ainda tenta continuar sobrepujando essa poder, talvez dando um passo atrás e se voltando a um cinema autoral ou até peitando a indústria.
Mas é fácil falar isso pensando em Coppola bancando o próprio filme ou Eggers correndo de volta para o terror na sua reimaginação de Nosferatu. Com o custo de US$ 75 milhões tendo se transformado em US$ 90 milhões em razão da pandemia de Covid, Batgirl primeiro perdeu sua intenções de ir para os cinemas em razão de uma pouca qualidade artística, depois foi cortada até de ir diretamente para o Max. A razão ficava entre “iria prejudicar a DC” e “os impostos e taxas envolvidas no lançamento no streaming não valiam a pena”.
Se Batgirl é ruim, talvez você nunca saberá, mas, ainda assim, é arte. Um filme que não poderá completar seu ciclo de vida e encontrar seu espectador, por não valer a pena em termos de dinheiro. Uma obra que poderá se perder, porque o não dará lucro. A arte não é lucro. A arte é arte, é a libertação dessas amarras e deveria lutar contra isso em vez de estar sendo censurada por isso. O capitalismo perdeu o controle e o cinema está começando a pagar por isso.
Mas não tem problema, quando a qualidade de um filme for julgada através do monte de dinheiro que juntou, lembre dessa lista: Enigma do Outro Mundo, Blade Runner, A Vida Aquática de Steve Zissou, Um Sonho de Liberdade, Scott Pilgrim Contra O mundo, Zodiáco, Donnie Darko e Clube da Luta. Todos filmes que foram lançados nas últimas quatro décadas, foram enormes fracassos de bilheteria e, bom, acho que sobreviveram muito bem à prova do tempo e do dinheiro que ganharam.