Em 2002, A Identidade Bourne nos apresentou a um personagem intrigante que, circulando por um mundo em que as reviravoltas e embates parecem verossímeis, forçou o próprio James Bond a tirar a cabeça das nuvens e retornar para tramas mais centradas na realidade. O espião não é mais aparentemente indestrutível, mas um homem que se machuca, leva porrada e, às vezes, comete erros. Com o passar dos anos, esta franquia foi investindo em tramas mais elaboradas, mas sem esquecer o estilo estabelecido no primeiro longa — o que nos leva a Jason Bourne, que retoma a trajetória do protagonista anos depois de ele ter sumido do mapa.
Até que Nicky Parsons (Julia Stiles) invade um computador secreto da CIA e toma posse de arquivos que, além de trazer informações sobre o passado de Jason Bourne (Matt Damon), também revelam detalhes perturbadores sobre o novo programa da agência, chamado de Iron Hand. O tal programa envolve uma parceria com Aaron Kalloor (Riz Ahmed), um jovem gênio da informática que desenvolveu a Deep Dream, uma plataforma digital que promete aos usuários total liberdade na internet — mas que, na verdade, faz parte do plano da CIA de vigiar o mundo inteiro. Enquanto isso, na agência, a missão de encontrar Bourne fica a cargo do diretor Robert Dewey (Tommy Lee Jones) e da agente Heather Lee (Alicia Vikander), recém-nomeada chefe de Operações Cibernéticas.
Se O Ultimato Bourne aparentemente havia encerrado a trajetória do personagem-título, esta nova produção mostra que ainda tem muita coisa de que Bourne não lembra e, por isso, constantemente somos apresentados a flashbacks que completam o quebra-cabeça que é o passado do protagonista (que, claro, surgem exatamente no momento mais adequado para o roteiro). Mesmo assim, é interessante acompanhar Bourne quando ele ainda não era Bourne: mesmo exibindo o mesmo porte contido e controlado, ele surge mais suave, algo refletido até mesmo pelos tons de vermelho e marrom que veste em uma cena-chave de seu passado — e que se contrapõem aos pretos, cinzas e azuis-marinhos que formam praticamente todo o seu guarda-roupa atual.
Nesse sentido, o trabalho de Matt Damon é obviamente fundamental para transmitir todo o peso que Bourne carrega consigo. Confortável e seguro ao encarnar o personagem pela quarta vez, Damon continua fazendo de Bourne um homem solitário e focado que, movido pelo desejo desesperado de desvendar todo o mistério que o cerca, mostra-se perigoso e extremamente calculista. Enquanto isso, Alicia Vikander também investe em um semblante controlado e apenas sutilmente expressivo, fazendo de Heather Lee uma agente que segue sua própria agenda dentro da CIA. Já Tommy Lee Jones é capaz de transmitir ameaça através da suposta delicadeza de seus gestos e tom de voz.
Aliás, é interessante notar como o auto-controle de Lee faz com que o arrogante e excessivamente confiante Dewey jamais perceba o quanto ela o despreza e o quão fortemente rejeita suas ordens e ideais. É apenas através de discretas mudanças no olhar ou na expressão corporal que Vikander sugere sua frustração e raiva ao ser constantemente referida pelo diretor da agência através de expressões que buscam infantilizá-la (“kid”, “the girl”) ou reforçar sua inexperiência em campo. Outra consequência interessante dessa caracterização é que os erros de Dewey são resultado justamente dessa arrogância e falta de confiança em Lee, e não por pura burrice (como é o caso de tantos profissionais fictícios, que surgem ridiculamente patéticos só para que os mocinhos possam parecer mais inteligentes).
Outro dos maiores trunfos de “Bourne” retorna com força total: as espetaculares sequências de ação desenvolvidas pelo diretor Paul Greengrass (que, ao lado de Christopher Rouse, também assina o roteiro). Ao assumir o comando da franquia a partir de seu segundo filme, Greengrass provou-se um mestre em construir perseguições e combates físicos. Por mais complexas que sejam essas sequências, o cineasta sabe cortar exatamente no momento certo para que, mesmo com planos curtos, consigamos entender perfeitamente o que está acontecendo e como aqueles corpos se localizam e se movimentam pelo espaço. Nesse sentido, merecem destaque uma perseguição de moto por morros gregos tomados por manifestantes e, já no terceiro ato, uma perseguição de carro que percorre o trânsito regular de Las Vegas.
O roteiro, por sua vez, é interessante ao investir em uma trama contemporânea (algo que o longa escancara através de frases como “Pode ser pior do que Snowden”). Entretanto, jamais entendemos exatamente o que é esse tal de Deep Dream que, em momentos diferentes, é descrito como uma “nova plataforma” ou como uma espécie de mídia social. Os ávidos por tecnologia mal podem esperar para utilizá-la, mas o espectador fica sem saber o que a tal ferramenta revolucionária é. Da mesma forma, por mais calcada na realidade que a franquia seja, é difícil de acreditar que uma CIA inteligente e preparada como a que vemos aqui guardaria arquivos ultrassecretos em uma pasta descaradamente intitulada “Black Operations”.
Um dos temas centrais de Bourne é motivação: o protagonista precisa conhecer todas as peças de sua trajetória para saber o que o levou aonde ele se encontra agora. Mas, aqui, todos têm suas próprias motivações e anseios — e é quando eles colidem que os personagens entram em conflito. Jason Bourne é, portanto, uma adição que acrescenta um material interessante à trilogia original, ainda deixando a porta aberta para a possibilidade de outras sequências.
“Jason Bourne” (EUA, 2016), escrito por Paul Greengrass e Christopher Rouse, dirigido por Paul Greengrass, com Matt Damon, Alicia Vikander, Tommy Lee Jones, Vincent Cassel, Riz Ahmed, Julia Stiles e Ato Essandohg.