Operação Red Sparrow é um filme para quem gosta de histórias de espionagem sem a ação dos filmes de James Bond e com um jogo de gato e rato intelectual que irá fazer você sair do cinema pensando por um bom tempo sobre o que foi que aconteceu.
Isso porque o roteiro de Justin Haythe adaptado do romance de Jason Matthews vai direto ao ponto, estabelecendo rapidamente as relações entre seus personagens, e chegando um momento que ele não questiona mais se o espectador está conseguindo ou não seguir o raciocínio da bela espiã Dominika Egorova (Jennifer Lawrence), que vai pulando de camada em camada da psique das pessoas, como se fazer isso já estivesse em seu sangue.
E de fato está. Sobrinha de um homem influente (Matthias Schoenaerts) em um governo russo que parece não ter mudado nada desde a Guerra Fria (eles usam disquetes!) Dominika começa sendo a principal bailarina do Bolshoi, o grupo de balé russo, quando um acidente a faz lesionar a perna e tirá-la não apenas do seu sonho, mas da proteção financeira do governo, o que inclui os cuidados de sua mãe inválida e sua moradia. Logo fica claro para ela que aceitar a ajuda do tio, além de ser a única opção, será a mais cara de sua vida.
Este é um filme que apela levemente a mais para a fantasia. Ele nos tenta fazer acreditar em uma espécie de treinamento subversivo que forma “soldados” cuja função é se infiltrar na mente e na alma de suas vítimas, descobrindo suas vulnerabilidades para obterem as informações requisitadas pelos ex-soviéticos. “O corpo de vocês pertence ao estado”, diz a instrutora interpretada por Charlotte Rampling como se fosse uma constatação necessária para que seus “alunos” desistissem de lutar contra seus instintos, o que não parece ser um problema para ninguém exceto Dominika.
E do outro lado da equação e do oceano temos a Cia que, representada pela figura de um homem (Joel Edgerton) que prefere salvar seu amigo do que deixá-lo com o destino de todos cuja função já foi cumprida – a morte – vai se consolidando como apenas uma variação da paranoia russa com uma espécie de bônus da individualidade. Como se isso importasse quando, de acordo com a fala de um personagem importante, já se nasce em uma prisão.
Esse personagem importante é interpretado por Jeremy Irons, que faz a versão mais sutil possível de um Big Brother (do romance 1984, não do programa televisivo… e como é doloroso ter que fazer esta distinção). Com seus óculos levemente sombreados e levemente maiores que o normal, aliado à sua face estática frente aos maiores problemas que lhe são apresentados, ele, com seus poucos momentos no filme, se materializa como a versão adulta de Dominika, que durante a história vai sofrendo uma metamorfose nessa direção, se transformando em uma máquina de intrigas para conseguir fugir da gaiola onde o seu tio a colocou.
E se sou vago com os detalhes da trama é porque ela merece ser degustada em primeira pessoa, com nossa atenção focada não no que é aparente, mas no que não é visto: a mente ágil, impassiva e ao mesmo tempo visceral de Dominika Egorova, que não por acaso, carrega em seu sobrenome o gene da sua única salvação: abraçar seu egoísmo e individualidade enquanto ainda lhe resta.
E por falar em visceral é preciso alertar que este filme possui muitas cenas fortes, poucas de sexo e muitas de violência, que é gráfica quando necessário. Por exemplo, quando precisamos ver a bengala nas mãos de Dominika arrebentando os corpos de seus detratores, para entender que a transformação pela qual ela passará é apenas uma descoberta do que ela sempre foi. “Especial”, como ela diz.
Aliás, note como desde o primeiro momento os símbolos no filme vão sendo apresentados em momentos-chave. Quando Dominika está punindo os que a fizeram perder seu sonho, ela o faz com eles em pleno ato sexual, o que assume um aspecto moralista. Mais tarde ela mesma irá usar seu corpo para conseguir o que quer, o que demonstra mudanças ou revelações de seu caráter. Da mesma forma é feito com a violência. Após esse primeiro ato com a bengala ela fica com as mãos levemente sujas de sangue, e esse sujo de sangue vai assumindo proporções cada vez maiores.
Mas além de tudo esta é, como todo filme espião bem feito, uma história cínica que apesar de lidar com vilões e mocinhos, e até um romance, a linha é tênue, apesar de estar lá. O que nos leva a reinterpretar a todo momento o que está acontecendo, o que é ótimo, pois revela sutilmente as camadas de uma narrativa que respeita a inteligência do espectador e ao mesmo tempo a inteligência da protagonista.
Jennifer Lawrence é a escolha perfeita para o papel da espiã russa, e quando ela muda a cor de seus cabelos sua transformação é completa. Versátil e habituada a fazer a mulher forte que não mede esforços, este segundo trabalho com o diretor Francis Lawrence é mais maduro que a série Jogos Vorazes. Lawrence consegue ser sexy e séria ao mesmo tempo sem soar ridícula, e no processo demonstra como algumas de suas ações podem ser dolorosas demais para ela.
Já Francis Lawrence dirige um casting equilibrado que se beneficia das sombras típicas do gênero e os diálogos afiados do roteiro. Mas é de Lawrence, diretor, o pulso firme em não desbancar uma trama bem construída em mais um suspense clichê, um risco que Francis – vindo do mundo dos videoclipes – parece a todo momento flertar, felizmente sem concluir o processo. A despeito da violência gráfica o filme mantém seu peso, fazendo-nos acreditar que tudo aquilo poderia muito bem estar acontecendo, mesmo que esse pensamento seja ridículo.
Esta é mais uma oportunidade também para que James Newton Howard (King Kong, Batman: O Cavaleiro das Trevas) brilhe na produção de uma trilha sonora que se aproveita dos temas de espiões, tornando a experiência carregadíssima de referências e ao mesmo tempo original. Note como o tom de deslumbramento da música-tema nos faz flutuar sobre tudo aquilo que está acontecendo, como se esta fosse uma revisita àquela época em um universo paralelo; o universo do cinema.
Construído a partir de um romance de espiões, Operação Red Sparrow poderia muito bem ser uma adaptação burocrática cujos detalhes nos fazem dormir. Mas não é bem assim. Os pontos-chave da trama são tão bem colocados no início do filme que apesar do filme se estender por duas horas e vinte minutos, a sensação é de que não queremos sair daquela atmosfera que o filme nos fez amar. Ou isso, ou eu tenho um fraco por filmes com belas espiãs russas interpretadas por atrizes norte-americanas. Nota a ironia desta produção?
“Red Sparrow” (EUA, 2018), escrito por Justin Haythe, dirigido por Francis Lawrence, com Jennifer Lawrence, Joel Edgerton, Matthias Schoenaerts, Jeremy Irons