Sobre todo hype, Saltburn é preguiçosamente dividido em três partes. A primeira está lá para enrolar até chegar a próxima. A segunda não tem muita coisa para mostrar, então aposta em um monte de cenas chocantes e que vão deixar os mais moralistas aterrorizados. Por fim, na terceira acontece um monte de coisa, mas sem explicar muito o porquê, então resolve a história toda “mostrando” tudo quanto é possível… se é que vocês me entendem.
Mas nada disso faz de Saltburn mais que uma experiência vazia e meio sem propósito nenhum que não seja chocar. O que não tira pouco da qualidade técnica da diretora Emmerald Fennell, que já tinha feito algo semelhante em Bela Vingança: um filme incrível de ver, mas que só finge deixar algo para ser discutido depois.
Nesse caso, Saltburn talvez tivesse algum tipo de intenção de discutir o vazio dessa classe “super alta” da sociedade. Mais especificamente da Inglaterra, com seus títulos de condes e mansões vitorianas encrustadas no meio do campo e com mais quartos e banheiros do que os seres humanos normais deveriam ter. Mas isso quer dizer pouco para o filme, já que, mesmo com cara de vingança, revolta ou algum tipo de vampirismo, nada disso fica para depois, tudo está lá, jogado na cara… tudo menos as motivações.
Principalmente o que leva Oliver (o sempre sensacional Barry Keoghan) a se aproximar de Felix (o sempre esforçado Jacob Elordi), um ricaço de uma família centenária e com um título de Conde em algum lugar. Os dois estudam em Oxford, mas Oliver está bem longe do grupo de gente rica, famosa, descolada e bonita de Felix, até que uma série de eventos meio aleatórios os colocam próximos, levando o primeiro para dentro da família do segundo em um feriado. E dentro significando a hospedagem na propriedade que dá nome ao filme.
A diretora também escreve o roteiro e enrola todo esse tempo para mostrar o quanto Oliver talvez seja possessivo e obcecado, mas nunca permite ao espectador julgá-lo como um maluco qualquer. Do outro lado, mostra um Felix que fica na corda bamba entre um coração bom e uma vontade enorme de ser um riquinho esnobe babaca. Portanto, não se preocupe em torcer ou criar empatia por ninguém.
O que se estende para Saltburn, já que a família de Felix é um desfile de excentricidades e pessoas perdidas em suas fortunas e distanciamentos com as pessoas que não estão em seus “lugares”. E é difícil não se divertir com o total desligamento da realidade dos pais de Felix, vividos por Rosamund Pike e Richard E. Grant. Talvez o tom dos dois seja aquilo mais eficiente no filme, já que é impossível não ficar incomodado com um punhado de frases dos dois, deixando o filme rumar, mesmo que só por um segundo, para uma espécie de comédia desenhada em assuntos sinistros e pesados. Portanto, a “comédia Saltburn” funciona muito melhor que o drama quase existencial que o filme pensa ter.
Enquanto Oliver vai se acostumando e tentando entender o que realmente move Saltburn, tudo parece funcionar mais, ainda que, obviamente, exista uma trama por trás que é o que move a trama. Isso e o choque. E olha que nem é nada muito chocante assim!
Em pouco tempo o inseguro Oliver começa a se tornar um personagem poderoso demais para o primeiro ato. Como se despertasse diante de uma série de desejos, mas logo o espectador vai começar a desconfiar que aquele Oliver nunca existiu e que ele era apenas uma desculpa do roteiro para você acompanhar o filme. Uma decisão que soa injusta, afinal, nada até aquele momento leva a crer que isso aconteceria (por mais que os cinéfilos “mais acostumados” já desconfiassem disso tudo).
Mas o novo Oliver está tão preparado para participar de uma série de cenas chocantes e “singulares” que ninguém parará por muito tempo para pensar a respeito disso. Nesse momento, Saltburn (o filme) começa a existir apenas para chamar a atenção. Por mais que exista um fio condutor nas ações do personagem, tudo é suprimido pelo extravagante e, por que não, bizarro.
Sem dúvida nenhuma, isso funciona.
Por um momento, tudo em Saltburn parece perdido em um caos que pode fazer sentido dentro desse mundo de clichê hedonistas de uma corte qualquer da Inglaterra vitoriana, mas trazido para a primeira década do século 21. Um lugar onde é realmente difícil adivinhar qual será a próxima maluquice, exotismo, trama palaciana ou estranheza. O que é ótimo para o filme e talvez dure o suficiente para salvá-lo da maioria dos seus outros problemas.
Desse meio para frente também é um ótimo momento para o elenco brilhar. Keoghan mais uma vez emplaca um papel digno de lista de melhores do ano, coisa que vem fazendo desde 2017 em O Sacrifício do Servo Sagrado. Mesmo prejudicado pelo roteiro que não decide qual tom ele deve ter no primeiro momento do filme, o crescimento dele do meio para a frente é divertido, violento e sem pudores com o personagem. É impossível não julgar certas ações de Oliver e a frieza delas vem muito da qualidade da atuação de Keoghan.
Ao seu lado, Jacob Elordi é alto e bonito demais para passar despercebido, mas sempre se esforça para criar um personagem que é esnobe por natureza, ainda que tenha uma delicadeza e sensibilidade que colocam-no em um mar de tons de cinza. Mas é sua família que brilha.
Rosamund Pike é mais uma vez incrível nessa pessoal desprezivelmente divertida. Richard E. Grant parece estar em uma dimensão paralela onde tudo acontece ao redor dele e ele não precisa ligar para ninguém. Já Alison Oliver, no papel da irmã de Felix, Venetia, agarra com unhas e dentes absolutamente todas oportunidades que tem de brilhar, seja com olhares, seja comendo, seja gozando ou, por fim, com um monólogo de gelar a alma de qualquer um. Menos de Oliver.
Porque, muito provavelmente, Saltburn tem essa intenção: acompanhar esse personagem frio em uma missão que demora um pouco demais para ser descortinada. Em certos momentos o roteiro leva a crer até que Oliver está improvisando, quando na verdade (e aqui spoilers!) tem intenções muito mais antigas do que o roteiro demonstra durante quase todo o filme.
Nessa mesma hora, que o espectador descobrir as intenções de Oliver, com um monte de flashbacks, o espectador perceberá que estava participando de um jogo com Emerald Fennell em que só ela via as cartas. Ou que só ela tinhas as cartas e sabia as regras. E pior, um jogo que prometia ter uma certa profundidade em discutir a vida dos ricaços, mas se deixa ser só um truco meio bêbado em que o espectador não tem a oportunidade de gritar em cima do blefe.
Mas a trilha sonora é incrível e Keoghan participa de um trio de situações que conversarão com certos limites morais (ainda que uma delas seja puro moralismo bobo do público surpreso!). Outra delas, o tal final “cheio de spoilers” pela mansão, é visualmente incrível e desafiadora, mas com quais intenções? Onde Fennell quer chegar? Por que tanta referência à mitologia grega? Precisa mesmo de tudo isso para dar significado à história?
Para não responder nada disso, a diretora ainda espalha pelo filme um punhado de curiosidades e rimas visuais e narrativas que farão a felicidade de muito criador de conteúdo, mas que falam pouco sobre o filme. Pior ainda, parecem apenas “easter eggs” jogados por lá para fazerem os fãs acharem que Saltburn é muito maior e mais complicado do que ele realmente é. Como se tentasse preencher o próprio vazio com um copo de vinho vazando. Ainda é o mesmo vinho que está dentro do copo, não se preocupem.
“Saltburn” (UK/EUA, 2023); escrito por Emerald Fennell; com Barry Keoghan, Jacob Elordi, Archie Madekwe, Raul Rhys, Richard E. Grant, Rosamud Pike, Carey Mulligan e Alison Oliver