Greg Rucka pode ser considerado um dos daqueles escritores de quadrinhos que já estiveram em todos lugares e sempre conseguiu fazer grandes histórias independente dos personagens, capas, poderes e fantasias. Sua série de 2017, The Old Guard surge agora como grande aposta da Netflix para “filme de ação do ano”. Pelo menos é Rucka quem adaptou, então fica fácil entender de quem é a culpa do filme não acabar sendo tão empolgante para o público quanto é pra Netflix.
Não que o filme fique muito longe disso, quase tudo nele funciona perfeitamente bem, principalmente aquilo saído dos quadrinhos, já que quando a história decide tomar um rumo diferente, quase sempre tropeça nas próprias intenções. Portanto, com finalidades bem claras de criar um filme com uma história mais “padronizada”, um visual menos violento e uma obsessão por abrir espaço para uma continuação, o próprio Rucka estraga sua história.
Sobre a ideia da continuação, isso parece ser um desejo antigo da Netflix, já que tenta emplacar uma sequência de seus filmes de ação desde 2017 com Bright, que finalmente deve ganhar um “número 2” nos próximos anos. Mas só esse ano o serviço de Streaming “forçou” um “final querendo mais” em Resgate, Troco em Dobro e Bala Perdida. Tudo bem, The Old Guard faz isso de modo mais “bem preparado”, mas mesmo assim é algo que empurra o filme em um caminho não muito interessante, principalmente diante do material original, muito mais bem recortado e orgânico.
A história no papel e nas telas é a mesma, um grupo de “guerreiros” com um segredo: são imortais. Mas durante o século 21 isso quer dizer que ainda precisam lutar para permanecerem anônimos fazendo o bem ao invés de se transformarem em um projeto de ciência de algum país qualquer. É mais ou menos isso que acontece, já que a identidade deles é entregue para um milionário sem muitos escrúpulos e só lhes resta fugir dele e de seu exército de capangas.
Isso tudo ao mesmo tempo que descobrem o “nascimento” de mais uma imortal, uma soldado americana. Tudo bem, Nile (Kiki Layne) serve também de desculpa para que Andy (Charlize Theron) tenha a oportunidade de explicar para ela (a para os espectadores) todo funcionamento do mundo onde ela vive com Booker (Matthias Schoenaers), Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marinelli), os outro imortais.
Mas estamos falando de um filme de ação, e a direção de Gina Prince-Bythewood dá conta dessa responsabilidade e não perde nenhuma oportunidade para entregar para seus espectadores grandes cenas de luta muito bem coreografadas, um ritmo ágil e uma ótima dinâmica entre seus personagens. A maioria disso tudo já está nos quadrinhos de Rucka, desenhados por Leandro Fernandez, e transpassar isso para o cinema mantendo o clima das HQs é um trabalho mais complicado do que parece (o exemplo de fracasso recente de The Last Days of American Crime ainda deve estar fresco na mente de muita gente).
A impressão que fica é então que a diretoria daria conta muito bem, tanto daquilo que ficou de fora do filme, quanto das mudanças de Rucka. Enquanto nas HQs o Rucka escritor de quadrinhos entende que quanto mais tentar explicar tudo de extraordinário que tem na trama, mais deixa espaço para perguntas que não querem ser respondidas, o Rucka roteiristas de cinema prefere perder tempo tentando criar um fio de razão dentro de um mundo que não precisava disso. Pior ainda, cai em alguns clichês cansados que, justamente sua obra original renega com toda força. Seus personagens são simplesmente imortais, sem muita explicação e sem aquela vontade de fazer com que um deles se torne mortal por pura comodidade narrativa. Seu The Old Guard sai das páginas dos gibis para encontrar a própria preguiça narrativa.
E fuja daquela argumentação, “mas são produtos diferentes”, já que, mesmo sendo, The Old Guard adapta fielmente bem grande parte das cinco edições lançadas pela Vertigo e o resultado é uma primeira metade de filme impecável e divertida. Que confia em seu espectador, não se perde em diálogos expositivos e coloca na tela com uma precisão mecânica uma das sequências mais legal da série (envolvendo uma declaração de amor e um “carro-forte”) e isso tudo funciona perfeitamente bem. Portanto, não se engane, certas histórias em quadrinhos têm sim mais vontade de se tornarem filmes, seguir o que foi feito nas páginas é quase sempre o caminho mais curto para o sucesso da adaptação, mas Rucka decidiu tomar um atalho e prejudicou a própria história.
Até a personalidade da protagonista vivida por Charlize Theron precisa passar por uma mudança estrutural para “caber” nas novas ideias do roteirista, tirando dela um tom divertido e relaxado que convive com suas camadas mais complexas e escondidas, para optar por uma heroína de filme de ação (com o perdão da palavra) “fodona” e que parece sempre estar de saco cheio de tudo. Um recurso meio blasé e que tira o enigmático e deixa florescer a obviedade de uma personalidade dolorida pelos milênios vividos.
The Old Guard talvez acabe não se tornando um dos grandes filmes de ação do ano, justamente, pois, assim como Andy, parece não ter muita paciência para continuar naquela história que começou contando. Mas essa primeira metade do filme é tão legal que não vai deixar nunca que o resto das más decisões do Greg Rucka estraguem seu filme.
“The Old Guard” (EUA, 2020); escrito por Greg Ruck, a partir da série de HQs de Greg Rucka e Leandro Fernandez; dirigido por Giba Prince-Bythewood; com Charlize Theron, Kiki Layne, Matthias Schoenaerts, Marwan Kenzari, Luca Marinelli, Chiwetel Ejiofor e Harry Melling