The Last Days of American Crime | Um desastre


The Last Days of American Crime, nova grande produção da Netflix traz à tona três questionamentos interessantes: 1) O serviço de streaming realmente descobriu a galinha dos ovos de ouro; 2) Difícil entender a razão de fazer uma adaptação se você vai deturpar a obra original completamente; 3) A Netflix precisa urgentemente começar a cuidar de suas produções com uma mão mais pesada, porque está difícil ficar vendo essas obras infladas e desgastantes.

Portanto, vamos então uma coisa por vez.

Esqueçam a Marvel e a DC, a Netflix sabe que o futuro do cinema, em termos de adaptações de quadrinhos, está nas páginas das editoras menores. Sem a tensão das grandes e com mais liberdade criativa, editoras como Image, Dark Horse e IDW, abrem espaço para séries com muito menos capas esvoaçantes e poderes e mais… digamos assim, histórias.

Alguns exemplos? Em 2019 a Netflix apostou suas fichas em Polar, filme com Mads Mikkelsen e Vanessa Hudgens, que originalmente é uma HQ digital da Dark Horse. Mais recentemente, Resgate se tornou um dos filmes mais vistos da plataforma e é baseado em Ciudade, lançado pela Oni Press. Já a próxima grande aposta da Netflix para o segundo semestre é “The Old Guard”, os quadrinhos foram lançados em 2017, pela Image Comics.

Também pela Image foi lançado The Last Days of American Crime, em 2009, escrito por Rick Remender e desenhado pelo brasileiro Greg Tocchini. A série foi dividida em três números é um mergulho violento e divertido nessa América caótica e lindamente desenhada e pintada pelo artista brasileiro. Remender prefere se deixar levar pelo exagero e faz muito bem ao material. O The Last Days of American Crime de Remender e Tocchini é divertidíssimo e resultaria em um grande filme de ação à lá Adrenalina (aquele com o Jason Statham), ou até se ficasse nas mãos de algum admirador do Tony Scott. Mas decididamente não é isso que acontece.

O que nos leva até aquela segunda questão do primeiro parágrafo: Para que adaptar um material original se você vai simplesmente ignorar completamente ele?

Não que deva existir aquele discurso velho e mofado da obrigação do filme ser igual ao livro (ou HQ), não deve. Cada produto é um produto e deve saber onde doem seus calos. Ou como diria Stephen King, “laranjas e maçãs, deliciosos, mas com gostos bem diferentes”. Mas pelo menos ambos são frutas. Imagine se o discurso de King seria o mesmo diante de um O Iluminado onde Kubrick transformasse tudo em um filme de vingança com um brucutu dos anos 90 e um vilão caricato… mas como está dentro do Overlook Hotel, tudo bem!

Não, não está.

The Last Days of American Crime de Olivier Megaton e escrito por Karl Gadjuseck muda tanta coisa do original que é difícil entender como esse roteiro foi aceito. A quilómetros de distância é fácil ver o desastre. Isso, porque as mudanças estruturais da dupla tiram grande parte do que funciona nas HQs e isso faz surgir uma estrutura engessada e tão repleta de estereótipos cansados que fazem com que os momentos interessantes se percam diante de motivações soníferas e óbvias.

No filme, os Estados Unidos estão diante de um acontecimento que irá acabar com o crime no país, uma espécie de transmissão que impedirá as pessoas de cometerem crimes. A data já está marcada, mas antes disso ainda dá tempo de um assalto bilionário onde o Cascadura Bricke (Edgar Ramírez) é convidado à participar pelo amalucado Kevin Nash (Michael Pitt) e a sexy Shelby Dupree (Anna Brewster). A ideia é atrasar o tal sinal e conseguir fugir para o Canadá.

Mas para nenhum deles o que importa é o dinheiro. Nash quer provar para a família que é um criminoso e Bricke quer vingar a morte do irmão. Já Dupree também tem lá seu empurrãozinho preguiçoso, mas é um spoiler. O que importa é que nenhum deles aceita o que tem de melhor no gibi: a oportunidade de ganhar muito dinheiro.

Pode parecer pouco ser “só pelo dinheiro”, mas com tanto dinheiro em jogo, ele não importar para ninguém, soa idiota. Do mesmo jeito que, ao colocar o foco do filme em Bricke como um especialista em roubos à banco, perde um dos melhores elementos da HQ: ele ser um cara normal. Não tão normal assim, mas bem longe do tom invencível que o diretor Megaton imprime com a ajuda de Edgar Ramírez, dramático, sem humor, pesado, com olhos cerrados e a voz baixinha. Ramírez é uma orquestra de uma nota só, tem todos os instrumentos para uma boa atuação, como já provou várias vezes em sua carreira, mas prefere esse arremedo de atuação.

E por mais que alguns momentos da HQ sejam transportados diretamente para o filme, como todo o resto não faz sentido é difícil se empolgar até com esses fiapos de interesse. Muito disso, pois o diretor francês Olivier Megaton nunca esteve tão comum em toda sua carreira. Suas cenas de ação são sem graça, suas composições não chamam a atenção e seu ritmo é tão capenga e entrecortado que o filme parece ser dividido entre segmentos separados sem ligação temporal ou linearidade. Em resumo: uma bagunça.

Um exemplo disso é a existência desse polícia vivido por Sharlto Copley, que surge na história vindo do mais absoluto nada, se desenvolve para nenhum lugar e entra no final sem ter a menor importância.

É mais interessante ainda observar o quanto o roteiro de Gdjusek tem essa obsessão pelo trágico, uma tendência de certa parte do cinema atual de aventura e ação, que simplesmente não consegue ver a felicidade de seus personagens e apenas sabem bater nessa mesma tecla do “sacrifício heroico”, como se isso fosse a única opção para redimir seus personagens. Não se enganem, o nome disso é preguiça.

Por fim, aquele terceiro ponto lá do primeiro parágrafo é um pouco o resumo de todos esses equívocos. É difícil afirmar, mas tudo leva a crer que, diante do esforço da Netflix de dar liberdade para seus criadores, faz muita falta, justamente, a mão pesada do estúdio. Não para podar, mas sim par polir, definir, ajustar, alinhavar e ajudar a encontrar o caminho mais correto para cada história.

The Last Days of American Crime não é o primeiro filme da Netflix a sofrer com uma montagem que parece não deixar nada de lado. São 148 minutos com tanta coisa sobrando que é fácil imaginar que um filme com 90 e poucos minutos já seria mais que necessário e suficiente para contar essa história.

Do mesmo jeito, falta discernimento para certos realizadores, já que é difícil julgar, editar ou corrigir o próprio trabalho, ainda mais quando estamos falando de obras de arte. Grandes estúdios de Hollywood e seus produtores fazem esse papel, talvez em alguns momentos até exagerem, mas, acredite, na maior parte do tempo, acertam, afinal o que não faltam são seus filmes preferidos por aí.

Falta isso na Netflix, falta entender que, mesmo existindo muito material “dando sopa” por ai, principalmente nas HQs, é preciso saber aproveitar o melhor do material e, é claro, garantir que o resultado seja bom, não um desastre e um desperdício, como The Last Days of American Crime.


“The Last Days of American Crime” (EUA, 2020); escrito por Kark Gajdusek; a partir da HQ de Rick Remender e Greg Tocchini; dirigido por Olivier Megaton; com Edgar Ramírez, Anna Brewster, Michael Pitt, Tamer Burjaq, Brandon Auret e Sharlto Copley.


Trailer do Filme – The Last Days of American Crime

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