Tudo Por Ela | Se mantêm nos trilhos, mesmo com altos e baixos


O que você faria para estar junto daquele amor de juventude que nunca te deu bola? Sim, eu sei, estou ultrassimplificando Tudo Por Ela, um filme com altos e baixos, boas ideias e velhos clichês. Ele beira o brega em alguns momentos, o suficiente para pensarmos que se fosse produzido no Brasil teria trilha sonora de Amado Batista. Porém, é o lado trash que o mantém nos trilhos certos, e é quando se leva a sério demais que o esquecemos rápido demais.

Baseado no mangá Gunjou da mangaká Ching Nakamura, esta versão live-action adaptada com a ajuda da roteirista Nami Yoshikawa possui uma decupagem fantástica, que se destaca de algumas montagens convencionais para nos colocar sempre pensando em algo em cena que parece fora do lugar. A curiosidade cinematográfica mantém a ação acontecendo por mais tempo do que o esperado e serve para nos apresentar a este mundo vivido e compartilhado por duas amigas para a vida, Rei Nagasawa e Nanae Shimoda.

A história é simples e visceral em sua primeira meia-hora, que toma a acertada decisão de acompanhar o raciocínio do coração da jovem tresloucada Rei. Ela mata um homem com um plano frio, mecânico, simples e eficaz: paga uma bebida para o sujeito no bar. E todos sabemos que quando uma linda mulher faz isso ela pode fazer o que quiser com um homem.

A cena do assassinato é de uma beleza ímpar. Não apenas pelo nu de Kiko Muzuhara, mas também porque ela tem seu seio coberto de sangue e a cor de sua pele cria um contraste único que você nunca verá em outro filme. Não com a mesma estética. Se torna o clímax do filme inteiro, ou pelo menos a cena memorável depois de uns dias, porque se você não leu a sinopse ainda não entendeu nada das motivações de Rei nesse momento.

Então ocorre o primeiro flashback. E o segundo. Caminhamos pelas suas emoções represadas por décadas. E finalmente a entendemos. Ou pensamos entender. O filme tenta tornar essa fagulha da paixão de juventude em algo mais. Verbaliza demais. E nessa hora parte para o vazio dos lugares comuns.

Há um melodrama envolvendo essa história que foge dos rótulos fáceis de amor e amizade. Está mais próximo de fascinação. A micro-sinopse da Netflix nos diz: “Rei ajuda a mulher dos seus sonhos a escapar do seu marido violento. Durante a fuga, o sentimentos das duas pegam fogo. Censura 18.” Claro que é injusto julgar chamadas de duas frases em um catálogo gigante de streaming, e é certo entender que o filme é muito mais que isso. Infelizmente nem o filme tem muita ideia do quão mais, se perdendo em conjecturas que nenhum espectador questionou.

Ao tentar explicar a bela história e argumento conduzidos pelo sexagenário diretor Ryuichi Hiroki ambos viram mais do mesmo. Mas é um mais do mesmo belo, poético, e com cenas explícitas lembrando o soft porn Azul é A Cor Mais Quente. Hiroki gosta de transitar por suas cenas movendo o ângulo da câmera em 180 graus. É bonito de se ver, embora na maioria das vezes discutível. Há apenas um momento em que o movimento está embutido de significado, que é quando as duas, fugindo de carro, começam a atravessar uma longa ponte, e as vemos se afastando. No girar da câmera a fuga se transforma no início de um road movie, e agora o carro se aproxima de nós. E se foi talvez a última cena impecável de um longa de mais de duas horas de duração.

Tratando de relacionamento lésbico, acho bonitinho como o mundo civilizado busca países onde ainda exista culturalmente e primordialmente alguma intolerância a essas questões. Agora é o Japão. Por comparação é como contar uma história de miséria na África interiorana ou as mazelas da imigração forçada nos becos de Paris. Lésbicas japonesas podem ainda hoje não serem muito bem vistas fora das grandes metrópoles nipônicas. Sendo uma lésbica assassina, então, é um gatilho interessante.

Mas esqueça o lesbianismo, esse filme não foca inteiramente nisso, até porque ele não foca muito bem em parte nenhuma. São duas mulheres em fuga com “síndrome de Thelma e Louise“, mas dessa vez o suspense é saber se elas vão pular do precipício. Existem românticas suicidas nos dias de hoje? No Japão o suicídio está sempre em alta, mas o que dizer desse romantismo líquido atrapalhando as questões vitais?

A destreza com que “Ride or Die” (o título original, cafona e divertido do filme) muda os parâmetros e motivações de suas personagens seria divertidíssimo se o filme não começasse a se levar a sério da metade para o final. Caindo na armadilha de sair da trilha de Amado Batista e começar a tocar um Roberto Carlos mais clássico, passando dos cinquenta, a fascinante discussão metalinguística sobre filmes de paixões arrebatadoras no mundo contemporâneo vira algo sério. Mas essas meninas já deixaram de ser sérias na primeira curva da estrada. Antes seus olhares em ultraclose diziam muito mais. Agora elas abriram a boca e colocaram tudo por água abaixo.

Ao introduzir personagens já no terceiro ato, Tudo Por Ela nos confessa não ter tido a frieza de esquematizar melhor essas duas horas e meia de emoções. É a paixão que pega fogo rápido e logo apaga, sem a intensidade com que merece ser tratado o drama da violência e do amor exarcebado. Fica a imagem dos seios ensanguentados de Rei nos primeiros quinze minutos de filme. Essa cena merecia um filme mais digno de ser mostrada.


“Ride or Die” (Jap, 2021); escrito por Ching Nakamura e Nami Yoshikawa; dirigido por Ryuichi Hiroki; com Kiko Mizuhara, Honami Satô e Shinya Niiro.


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