150 Miligramas Filme

150 Miligramas | Luta contra o sistema já não empolga tanto


Há uma tendência atual do cinema francês em explorar casos que estabelecem de maneira caricata a dualidade clichê “mocinhos versus bandidos”. E em 150 Miligramas, mais uma vez, o bandido é uma fabricante de medicamentos (uma corporação), e o mocinho é alguém que luta contra um sistema cruel nascido das duas próprias preocupações com a famigerada “saúde pública” francesa.

O que se torna o ambiente perfeito para a construção de dramas com essa temática. Todos devem se lembrar que a “guerra romântica contra o sistema” nasce nas democracias mais precárias, nas repúblicas que possuem mais bananas, e Brasil e França nesse quesito são irmãs. Pela ânsia de poder, políticos patrocinam facilmente histórias cuja conclusão moral parece ser sempre “precisamos de mais controle”. E mais dinheiro, claro.

A história aqui é sobre o caso real de um medicamento que tem por objetivo controlar a obesidade de pacientes com diabetes, mas que tem como efeito colateral causar a morte de alguns desses pacientes. De cerca de dois milhões de usuários, a estimativa é de 1000 mortes em 30 anos que o remédio está em circulação, o que é menos que 1 morte por 2000 usuários. Os números não conseguem extrair a dramaticidade desproporcional que a diretora Emmanuelle Bercot entrega quando a violência cotidiana é mais ceifadora de vidas do que um remédio que previne obesidade.

Claro que para o roteiro adaptado do livro de Irène Frachon (a protagonista) a questão não é sobre os riscos da obesidade, mas estética. É muito mais fácil atacar, nas palavras da protagonista, um “remédio inútil”. Essa ditadura da beleza, no universo distorcido de 150 Miligramas, não apenas oprime, mas mata.

A grande questão que segura o filme é na verdade sua protagonista, a heroína salvadora dos fracos desenganados. No melhor estilo Joana D’Arc, a pneumologista dinamarquesa Irène Frachon luta contra tudo e contra todos e tenta a todo custo parar a comercialização do remédio que em seu dia-a-dia ela parece ter escolhido como o vilão ideal.

A história não vai tornar as coisas tão claras a princípio, mas em termos gerais é basicamente isso. Em termos específicos se torna a escalada de dificuldades que uma pessoa comum precisa vencer para atingir seu objetivo nobre. Ela portanto grita e discursa enfaticamente para todos que podem ser úteis nessa jornada, conquistando mais pessoas que se poderia esperar de alguém com uma paixão irracional. Em certo momento do longa alguém diz que o caso chegou a um nível kafkaniano, por lutarem contra um sistema jurídico irracional. Porém, todos ignoram a irracionalidade das táticas emotivas e apaixonadas de alguém que se dispôs a lutar contra o sistema simplesmente porque sim, sem medir de maneira racional suas causas e consequências.

150 Miligramas Crítica

150 Miligramas em sua longa duração se abstém de explicar os detalhes do caso de maneira neutra, preferindo o caminho fácil dos idealistas contra o sistema, e nesse processo vai se tornando uma jornada religiosa. Sua heroína é perfeita para o papel, blasfemando em sua língua-mãe, se mantendo atrás da cortina nebulosa de argumentos, mantendo seu idealismo universal forte em seu coração. Uma trilha sonora clássica acompanha o misto de insanidade e paixão da heroína em um trabalho tenso do começo ao fim.

A direção de Bercot, igualmente apaixonada, narra a história como uma jornada heroica, apelando para os nervos da heroína ao usar uma porta destrancada, uma fortuita quadra de tênis e um vulto ou livros caindo de uma mesa fazendo o som de um tiro.

A dinamarquesa Sidse Babett Knudsen, mais conhecida internacionalmente agora pela série televisiva Westworld, é a força motriz de tudo. Ela aparece em praticamente todas as cenas e faz as coisas acontecerem, e não torna nada fácil para ninguém. Ela está sempre no limiar do aceitável. Ela parece a maluca que consegue de controlar, embora deixe claro que isso nem sempre é verdade. Seu companheirismo com o doutor interino (interpretado pelo ótimo Benoît Magimel) atravessa uma linha tênue entre cumplicidade e compulsão maníaco-obsessiva. Ela costuma deixá-lo “de calças curtas”, uma das inúmeras metáforas que o filme inteligentemente emprega para tornar a trama mais visual, como alguns cortes que trazem Knudsen flutuando em um mar raivoso, sozinha, em uma tentativa arriscada de sobreviver e ainda nadar até a praia, ou até a piada (eficiente) dela ficar presa a entradas giratórias, como que andando em círculos sem sair do lugar.

Esta trama com certeza receberia atenção maior se estivesse embasada em fatos realmente kafkanianos, como o longo processo de Steven Avery no excelente documentário-série Making a Murderer, ou até uma ficção convincente como Eu, Daniel Blake. Porém, seus fundamentos são fracos demais para esta se tornar a clássica luta dos fracos e oprimidos contra o sistema cruel e imponente. Sua heroína não percebe a fraqueza de suas premissas, e talvez seja isso o que a torne uma heroína tão convincente.


“La fille de Brest” (Fra, 2016), escrito por Emmanuelle Bercot e Séverine Bosschem, dirigido por Emmanuelle Bercot, com Sidse Babett Knudsen, Benoît Magimel, Charlotte Laemmel, Isabelle de Hertogh, Lara Neumann


Trailer – 150 Miligramas

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