Um bom resumo para o inusitado A Gente, que chega quatro anos atrasado aos cinemas, é: a história de um carcereiro competente demais para o cargo. Tão competente que virou cineasta, e aqui volta à sua antiga profissão, além de dirigir, roteirizar, filmar, montar e produzir o documentário, demonstrando (mais uma vez) a situação muitas vezes insalubre com que os agentes penitenciários trabalham, e concluindo uma trilogia pessoal do cineasta.
Mas o lado interessante do longa é que essa situação insalubre não é dramatizada de forma alguma. O filme simplesmente acompanha sua rotina de inspetor Aly Muritiba (que faz ele mesmo no passado) e seus colegas de serviço (seus ex-colegas de profissão). A rotina envolve, além dos procedimentos com os presos, inúmeras reuniões com a equipe para tentar melhorar o serviço, seguido de constantes frustrações. Porque convenhamos: não é o tipo de vaga que atrai os melhores profissionais.
Tudo isso vai sendo contraposto com sua rotina fora da prisão. Pastor evangélico, o inspetor trabalha com a conversão e manutenção dos seus fiéis. Sua dicção cheia de vulgaridades gramaticais, vícios e redundâncias se aplica em ambas as rotinas. Ele fala que para alcançar a plenitude e a totalidade da graça de Deus é necessário abrir mão de coisas terrenas que nos impedem de atingir o sucesso. O filme pode assim ser visto também como uma longa lição a respeito do que acontece quando Deus não está disposto a ouvir.
Mas este não é um filme que entrega catarses, como se poderia imaginar quando uma diretoria burocrática e facções criminosas começam a agir em torno dos presídios de São Paulo e alguns presos vão ser transferidos. A Gente parece preferir exercitar do começo ao fim a arte da frustração. As coisas nunca acontecem como deveriam acontecer e as pessoas nunca melhoram, denunciando mais a nossa incompetência cultural do que sistêmica, já que tanto faz de onde vem o descaso; seja da administração ou do quadrante de celas, todos estão envolvidos em fazer corpo mole e reclamar da vida.
Até porque o único no filme que parece indignado é seu idealizador. De corredor em corredor, de rotina em rotina, o filme não nos ensina a didática da prisão. Aprendemos por osmose, ouvindo de lado a conversa dos agentes. E o que fica não é o funcionamento das prisões, mas a situação clara da falência do seu modelo. Não há recursos para que essas pessoas exerçam seu trabalho com segurança. O colete que eles usam é risível e apenas poucos possuem o “privilégio” de fazer um curso de tiro. Sem contar que nenhum deles aparentemente anda armado ou até possui o direito de estar armado. E, convenhamos, a situação dos presídios é tão carente de recursos que talvez seja uma boa ideia não haver nenhuma arma no recinto, já que sequer há algemas o suficiente.
Dividido entre a igreja e a prisão, onde uma parece espelhar a outra, o filme parece daqueles milagres que quando acontece revela algo inadvertidamente, às vezes mesmo sem a consciência de seus criadores. Pelo menos é assim que eu prefiro enxergar um momento em que o pastor está conversando com um fiel a respeito da passagem bíblioca do filho pródigo. Ele comenta como foi bem explicado pelo pastor da noite anterior por que as pessoas que cuidavam de porcos antigamente eram mal vistas. O porco era considerado um animal abandonado e amaldiçoado por Deus. Fica difícil não imaginar a analogia que é feita com os carcereiros, essas pessoas que trabalham com porcos hoje em dia.
O que explica também a aparente falta de patrocínio na produção do filme. Até do governo. Seria admissível (e até desejável) fazer um filme que mostre como é necessário despejar mais dinheiro para que pessoas fiquem enclausuradas entre quatro paredes, mas não se você relacionar essas pessoas com animais sujos e amaldiçoados. Apenas o filme ser dirigido por um agente penitenciário já lhe dá um certo crédito.
E o premiado diretor/roteirista Aly Muritiba (do ótimo Para Minha Amada Morta) não apenas foi agente por sete anos como voltou a sê-lo por mais 12 meses antes de começar as filmagens para ganhar a confiança de sua antiga equipe Alpha de agentes penitenciários. Por isso é possível notar tanto envolvimento e tanta informalidade de ambos os lados das “atuações”.
Havia dito anteriormente que o filme é desses milagres onde tudo acontece dando certo, ainda que aqui se trate de um resultado tão realista quanto assimétrico, que flerta com a sensação de inacabado. O milagre é surgir desta profissão um cineasta competente como Muritiba, que encontra cada vez maneiras mais criativas e engenhosas de contar uma história, e aos poucos vai galgando posições relevantes no cinema nacional. Também é uma provocação inteligente, esta da vida real, que apenas depois de trabalhos com apelo mais comercial este filme chega às salas comerciais. Não chega a ser uma surpresa. Inserido em uma cultura da incompetência, é de se esperar que filmes sofram dos mesmos sintomas vistos na história de A Gente. O trocadilho é a cereja no bolo.
“A Gente” (Bra, 2013), escrito e dirigido por Aly Muritiba.