A Outra | Uma viagem fragmentada e inquieta

Ainda que o cinema tenha a função de contar histórias (coisa que pode ser facilmente colocado à prova, mas isso é um outro assunto), quase sempre sai na frente quem consegue fazer isso ao mesmo tempo que se preocupa em exprimir um sentimento. Mais ainda, sai ganhando quem tem como objetivo, provocar isso em seu espectador, e A Outra consegue isso.

Nele, a dupla de diretores Patrick Mario BernardPierre Trividic convida seus espectadores a compartilhar uma viagem, fragmentada e inquieta, pela mente dessa mulher que acaba obcecada por algo que ela própria escolheu largar de mão. Na verdade Bernard e Trividic fazem mais que isso: te desafiam a entrar nessa história.

Para isso, não poupam ninguém de uma montagem estilhaçada e embaralhada pelas lembranças perdidas na cabeça dessa assistente social de 47 anos que, se culpando pela diferença de idade entre ela e o namorado mais novo, resolve largá-lo, até descobrir que ele então, acaba seguindo a vida com uma mulher com a mesma idade dela. A Outra não se move pelo remorso dessa decisão, mas pela inquietação de ver o quanto algumas delas não podem voltar atrás, do arrependimento e da solidão da protagonista, de se ver sozinha em um mundo que passa a não fazer mais sentido.

A Outra começa caótica pela madrugada de alguma metrópole, repleta de estática, ruído, sirenes e solidão, persegue duas vias paralelas de carros indo em sentidos contrários, como artérias daquele organismo pulsante e desafia a plasticidade dessas imagens cruas, compartilhando com você dessa histeria narrativa, dessa vontade de estar em todos lugares sem conseguir estar em lugar algum. Onde tudo acontece ao mesmo tempo. Como se a protagonista tivesse a obrigação de colocar em ordem tudo aquilo na sua cabeça, juntar todas essas peças desconexas para entender como ela foi chegar de frente àquele espelho recoberto com jornais, acompanhada apenas de um martelo, vendo sua sanidade se esvair em um filete de sangue que nasce da base de seus cabelos.

Logo de cara não parece existir uma preocupação de seguir uma linha, a imagem vem à tela de modo fragmentado (escuro até), apenas pedaços desse mosaico de sanidade que vai abandonando a protagonista, com seu sorriso triste e melancólico. Que aos poucos, vai descobrindo que o problema não é essa outra mulher, mas sim ela mesma. Como se, em certo momento, se descobrisse exatamente esse parasita, emocional, que não consegue sobreviver sem um hospedeiro a guiá-la.

Ainda que, aos poucos, esse tom todo vá se tornando mais e mais normal (já que as lembranças começam a se aproximar do presente) esse começo de filme pode facilmente ser confundido com uma certa presunção narrativa, e talvez isso mova mais ainda o espectador a ir de encontro a essa experiência, desafiando-o a montar tudo aquilo de um jeito que faça sentido. Tentando não ficar do lado daquele subconsciente preso dentro daquele espelho, mas sim acompanhando aquele trem, no final, que segue em direção a uma luz, que, por sua vez, não estoura em uma cegueira (ainda que faça isso por um segundo, muito mais pela surpresa), mas sim convida todos a descobrir esse novo mundo depois de todo caos.

A Outra aposta em compartilhar a dor daquela mulher com seus espectadores e consegue fazer até mais que isso: os deixa livres para ainda ver todo aquele mundo transitar por essa história de amor e arrependimento. Mesmo que todo olhos vazios (em fila dentro do museu) olhem para o mesmo lado e não pareçam enxergar muita coisa, já que as obras de arte (e as verdades) estão em outra direção.


L´Autre” (Fra, 2008), escrito e dirigido por Patick-Mario Bernard e Pierre Trividic, com Dominique Blanc, Peter Bonke, e Cyril Guei.


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