A Viagem de Meu Pai começa como um filme leve sobre as vicissitudes de envelhecer, mas aos poucos se transforma em um drama ambicioso em sua estrutura, pois transforma espectadores passivos em participantes da inevitável experiência do esquecimento de nossas próprias vidas.
Tendo como protagonista o charmoso, porém confuso (e nada inocente) velhinho Claude Lherminier (“com um h”, como ele diz), é divertido vê-lo tentar manipular suas cuidadoras, ou até suas perguntas ou pedidos indecorosos (“posso ver você tomar banho?”), assim como suas frases de efeito, que podem ocorrer de serem cruéis no meio de um elogio, ou doces no meio de um discurso surpreendentemente rancoroso. A maior virtude da primeira metade do filme é nos convencer que, confuso ou não, Claude no fundo é um bom velhinho que se torna cada vez mais confuso.
Tudo isso sua filha Carole (Sandrine Kiberlain) sabe de cor e salteado; herdeira natural da empresa do pai e que adapta a sua vida e a de sua família em torno dele, tentando lhe dar atenção e cuidados, mas que ao mesmo tempo observa com uma preocupação e seriedade que remete justamente ao momento no passado em que foi obrigada a aposentá-lo para tomar conta de seu legado antes que fosse tarde. Esse sentimento misto a respeito do pai é sutil, mas está sempre presente em suas visitas à casa da família, grandiosa e cheia de recordações para ambos.
O filme, adaptado pela dupla Philippe Le Guay e Jérôme Tonnerre, usa um artifício batido de início, mesclando memórias de Claude com sua viagem de avião para Miami, onde mora sua outra filha, Alice (um nome mais que sugestivo, pois evoca tanto o “País das Maravilhas” na imagem afetiva de Claude, como talvez incidentalmente o nome da personagem de Julianne Moore em Para Sempre Alice, onde sua personagem sofre de Alzheimer). Claude só quer beber suco de laranja da Flórida, está “brigado com o vinho” – por um motivo que sequer se lembra – e não gosta de arroz doce, pois ele lhe lembra um trauma de guerra (uma pequena pérola que demonstra não apenas a facilidade do roteiro em transformar algo repugnante em engraçado, mas também a incrível versatilidade do ator Jean Rochefort em viver seus diálogos, transformando Claude em uma criatura complexa, embora esteja caminhando em direção à simplificação – para não dizer deterioração – do seu ser e de suas próprias memórias).
Já a virtude de Philippe Le Guay na direção fica por conta dos seus cortes secos na passagem do tempo. Nós nunca sabemos se passou-se um mês ou uma tarde. Em dado momento, até o espaço começa a parecer confuso. Quando Claude sai de sua cama nunca há certeza do que está acontecendo, e às vezes nem onde está, ou com quem. Compartilhamos o clima de desorientação do próprio velhinho. O “truque” que o vemos fazer no começo da história para fazer sua cuidadora o levar à cidade já não funciona mais (pois ele se esqueceu que o já tinha aplicado). As investidas de Le Guay em nos levar a essa quebra nas memórias contínuas sobre o presente que estamos acostumados a ter é o melhor presente no filme.
Este também é um filme que tenta levar a discussão para o relacionamento entre pai e filha, e por isso envolve tanto a família, além de também abordar muito timidamente o respeito aos que já viveram demais. Porém, infelizmente a interpretação de Jean Rochefort rouba a cena, e o protagonista se torna muito maior do que qualquer assunto que o filme queira abordar, o que é uma ótima notícia, mas que torna a conclusão insatisfatória. O que é uma pena, pois a frase “não devemos brigar com os vinhos, assim como as pessoas; é perda de tempo” merecia uma situação melhor para ser dita. Não importa. Não é sempre que temos o momento certo para viver, pois os momentos são fragmentos no tempo que muitos de idade avançada não possuem o luxo de reter em suas memórias. Se o filme conseguir inspirar isso em seu espectador, já estará muito acima da média.
“Floride” (Fra, 2015), escrito por Florian Zeller, Philippe Le Guay, Jérôme Tonnerre, dirigido por Philippe Le Guay, com Jean Rochefort, Sandrine Kiberlain, Laurent Lucas, Anamaria Marinca, Clément Métayer