Anatomia de Uma Queda | A quem interessa a verdade?

A verdade é uma questão de ponto de vista. Talvez descobrir qual desses pontos de vista está certo seja importante ou não. Muito provavelmente essa verdade seja apenas um meio de seguir em frente acreditando naquilo como se fosse… uma verdade. Anatomia de uma Queda é sobre isso.

O marido francês de uma escritora alemã que aparece morto depois da queda do terceiro andar da casa. Sem testemunhas, apenas a impressões do filho com uma deficiência visual grave que acaba com quase toda sua visão. Isso e a convicção da mãe, que afirma não ter assassinado o marido.

Mas isso é só uma verdade e ninguém sobrevive apenas com uma verdade. O caso vai parar em um julgamento enorme, afinal, “a ideia de uma escritora matando o marido é muito mais interessante do que a ideia de um professor se suicidando” aponta um comentarista na cobertura do julgamento. Entretanto é difícil apontar quem está certo. Ou até se estar certo colocará essa pessoa em alinhamento com a verdade.

O objetivo do filme de Justine Triet, que ainda escreveu o roteiro com Arthur Harari, é observar e ir construindo esse cenário passo a passo, através de cada descoberta, ponto de vista e, por que não, verdade. Afinal, todos que testemunham no julgamento se sentem certos e que suas verdades são muito maiores do que qualquer argumento. O resultado disso é uma experiência, tanto poderosa, quanto absolutamente desesperadora. É difícil ficar olhando aquele filme crescer sem ter a certeza de que lado o espectador que estar.

É lógico que a espetacularização do julgamento faz com que a Sandra (Sandra Huller) fique na cadeira de acusada como uma monstra que assassinou o marido. Alguém que sequer consegue falar a língua do local e não tem a menor piedade com sua própria vida, já que seus livros são misturas de ficção com uma realidade que ela viveu. Mas quais não são?

A resposta não é simples e Sandra, culpada ou não, passa a ser julgada por absolutamente tudo que ela é, mesmo sem aquilo tudo ser um problema. O julgamento então se torna um desfile de acusações que colocam em jogo sua existência como mulher, escritora, mãe e esposa. Como se ela não tivesse mais o direito de ser uma pessoa que aquele mundo ao seu redor não quer que seja. O assassinato não está em primeiro plano quando a verdade dos outros é o que mais importa.

Anatomia de uma Queda vai construindo esse cenário onde a morte do marido é apenas um detalhe diante de uma história absolutamente mais complexa e emocional. Anos e anos de dores de um casamento que sobrevivia através de um trauma que moveu a relação dos dois e colocou o filho, Daniel (Milo Machado Graner), diante de uma responsabilidade que não é dele. O acidente que tirou parte de sua visão pode ter sido culpa do pai, pelo menos é isso que move a quebra da relação entre o casal. Um assunto complexo e uma motivação que pode ser ou não a razão do final da vida do pai.

Nada no roteiro de Triet e Harari é objetivamente claro, intencionalmente, já que o objetivo da experiência é deixar o olhar de modo quase isento. Pior ainda, sem deixar o espectador ter certeza daquilo que realmente está vendo. O uso do filho para criar as imagens em vez de flashbacks dá ao filme uma dinâmica que conduz o espectador para um labirinto de incertezas, afinal, tudo quando vira imagem parece ser verdade, ainda que essas verdades se contraponham.

Isso tira de Anatomia de uma Queda o jeitão de ser apenas um filme de julgamento e entrega para ele uma humanização profunda, já que Sandra e seu marido estão sendo despidos aos olhos do filho, ainda que eles não enxerguem claramente. Uma cegueira que casa perfeitamente com o ritmo do filme, com os diálogos poderosos e as imagens e acusações que se formam através de palavras. Junte a isso o sistema de julgamento francês, que permite uma interação constante da acusada e o resultado é um filme absolutamente poderoso em cada linha falada por esses atores. Será realmente difícil que algo no cinema em termos de roteiro nos últimos anos seja mais impressionante do que o diálogo entre o casal que começa pacífico e termina em conflito.

E tudo isso com uma câmera que beira um realismo tão poderoso que chega a ser dolorido. Como se Triet estivesse filmando um documentário sobre essas pessoas, ao mesmo tempo que entende o quanto é importante focar em certas reações em vez de olhar só para quem está falando. Tudo é econômico e firme, como se fosse uma verdade maior do que qualquer ficção.

E essa verdade talvez não seja suficiente para satisfazer ninguém, nem dentro do julgamento, nem a opinião pública (dentro do filme) e nem o espectador (fora do filme). Tudo fica no campo de uma dúvida que enterrará todos em um lugar onde uma vitória não é realmente uma vitória, quando é necessário destruir um mundo inteiro para que ela seja alcançada.

Talvez essa verdade culmine com a visão do filho, mas o que isso quer dizer? E como conviver com essa opção depois de tudo? E qual é essa verdade? Tudo isso fica solto no ar de Anatomia de uma Queda e fará o espectador pensar a respeito disso por muito tempo depois do final do filme. O que levará o espectador a apenas uma certeza: somente os filmes incríveis conseguem ficar com seus espectadores depois de seu fim e Anatomia de um Queda é um desses.


“Anatomie d´une Chute” (Fra, 2023); escrito por Justine Triet e Arthur Harari; dirigido por Justine Triet; com Sandra Huller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner, Antoine Reinartz, Samuel Theis e Jehnny Beth.


Trailer do Filme – Anatomia de uma Queda

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