Até para quem não ouve muita música, ou tem um estilo diferente do retratado em Argentina, último longa documental musical de Carlos Saura, há de se emocionar. Pelo menos em seus primeiros quinze minutos, onde um grupo de cantores evoca através de suas potentes vozes cânticos que traduzem a história de uma cultura que se formou através da união de diferentes regiões, que, separadas naturalmente por desertos e montanhas, não parece conhecer limites para a poesia do homem e da mulher simples, batalhadores de todo dia, sofredores como eternos oprimidos, trovadores do sol e da lua.
Através de um show arquitetado em um galpão no bairro de La Boca, em Buenos Aires, o filme não chega a quebrar a quarta parede, mas em uma introdução inspirada, deixa nós, espectadores, vermos o reflexo de uma câmera que se prepara para presenciar momentos inesquecíveis. E para os que pensam que Argentina é apenas tango, irão com certeza se surpreender com a versatilidade de sua música e dança.
Utilizando enquadramentos e montagens que se aproveitam de gigantescos telões colocados no cenário, além da liberdade completa da câmera e da luz, as tomadas são belíssimas, límpidas, e apesar de internas, usam palhetas que evocam o calor do dia e o frio da noite, características indissociáveis do clima na região andina. Porém, mais importante que os tons de luz é a qualidade musical que impressiona a todo momento. Ouvimos claramente as vozes de cantores, as batidas e cordas dos instrumentos, e até inspirados sapateados.
Este é um show que também se aproveita do roteiro ocasional, de pegar músicos e dançarinos prestes a se apresentar ou acabando de se maquiar. Cenários ocasionais são montados, mas logo vemos que na maioria do tempo isso é desnecessário, já que apenas vermos essas músicas sendo performadas de maneira tão apaixonada é suficiente para entreter sem entediar. Cada nova música é um momento que adiciona ao anterior e realiza uma viagem temática através do som.
No entanto, qual o foco aqui? Sabemos no início que há uma história por trás dessas músicas, que são folclóricas e que provavelmente muitos detalhes se perderam no tempo, nas guerras e nas gerações. Sabemos também que os artistas do filme são com certeza absoluta os maiores expoentes da música argentina. Os aspectos técnicos e artísticos são impecáveis, e algumas pequenas surpresas são aguardadas em cada performance, em especial a de um pianista que usa uma abordagem inusitada com seu piano, fazendo-nos ouvir a diferença entre cordas presas “pelo passado” e livres para ecoar no tempo. Uma reflexão que merece aplausos, assim como praticamente todos os números vistos.
Mesmo sem um tema definido além de mostrar a cultura musical do interior da Argentina (mais ou menos focado na região de Zonda, perto das cordilheiras), Argentina é um trabalho musical e artístico primoroso, que rivaliza em precisão com Pina, de Win Wenders, e que consegue mesmo filmado em um galpão/estúdio evocar através de luzes, cores, sons e movimentos um pouco do que seria a versão modernizada de um folclore regional, mas de beleza universal.
“Zonda: folclore argentino” (Arg/Fra/Esp, 2015), escrito e dirigido por Carlos Saura, com Pedro Aznar, Juan Falú, Marian Farías Gómez, Gabo Ferro, Liliana Herrero