Beira-Mar é aquele lugar onde terra e mar são confundidos, e onde geralmente há uma praia. Categorizar o trabalho que leva esse nome como “filme-gay” é de uma miopia sem tamanho. Seria o mesmo que chamar beira-mar (o local) de 100% terra firme ou de 100% alto mar. Havendo infinitos graus de atração sexual que uma pessoa pode ter, e que costumamos polarizar como gay e hétero, os protagonistas da história flertam com todos eles, como se andassem despreocupadamente pela praia em um passeio matinal.
Digirido e escrito pela dupla de gaúchos Filipe Matzembacher e Marcio Reolon em suas estreias em longas ficcionais, a história gira em torno de uma viagem de dois amigos, Martin (Mateus Almada) e Tomaz (Maurício Barcellos), em que um acompanha o outro para resolver um problema de família após a morte do avô. Pousam na casa do pai de um deles, que fica de frente para a fria praia. Ambos conversam amenidades, falam sobre experiências passadas, chamam alguns amigos para se divertir e parecem estar em uma fase de mudança em seu relacionamento. Apesar de uma sequência absolutamente exemplar envolvendo a visita à casa de seus familiares, ela funciona como acessória ao processo de descoberta dos dois rapazes, e pode ser considerado um flerte incidental com O Segredo de Brokeback Mountain, apesar de (ou por que) o conflito existente entre a família e o pai do garoto parecem pedir uma atmosfera de velho-oeste (até com direito a solo de gaita).
No entanto, ao observar a câmera sempre na mão, a importância dos objetos e pessoas fora de foco, além dos zooms com ênfase mais nos personagens e menos no que fazem (muitas vezes nem vemos isso em tela, como um momento em que alguém está serrando um pedaço de madeira), é de se considerar que o trabalho da dupla está totalmente focado em como as pessoas reagem e interagem ao ambiente, seja um sorriso de lado, um andar sem firmeza, um olhar desviado. Nesse sentido, se comparamos com o trabalho intimista de Ang Lee veremos que há mais semelhanças que coincidências, embora não com o mesmo ar de intolerância e conflito, e sim compreensão e cumplicidade.
Cumplicidade, aliás, é a palavra-chave para tentar determinar o grau de realização do elenco enxuto de atores, até entre os mais periféricos, como a Dona Natalia (Elisa Brittes), que consegue criar uma figura tão conhecida pelos trejeitos quanto única na situação ríspida em que é introduzida, e logo depois em uma segunda visita mais reveladora. Porém, os personagens que acabam se tornando indispensáveis em uma possível lista do ano para o gênero queer acabam sendo sem dúvida a dupla Mateus Almada e Maurício Barcellos, cuja sensibilidade em expressar de forma velada seus sentimentos só pode rivalizar com os movimentos de câmera da outra dupla na direção.
Usando cores neutras, mas que em conjunto se tornam frias, típica do Sul do país (do fotógrafo João Gabriel de Queiroz), e uma direção de arte que impersonaliza todos os cantos por onde a dupla anda, seja dentro de casa, no parque da cidade ou em uma avenida deserta, a intenção continua sendo dar menos destaque ao ambiente e mais às pessoas. Não apenas seus movimentos, como já foi citado, mas os diálogos banais que parecem sempre dizer algo a mais. Como sabemos desse jogo entre mar e terra, fica fácil perceber segundas intenções no momento em que um dos garotos descreve como se perdeu na praia e levou a pior surra da sua vida de seu pai, ou até em uma pergunta inocente a um quase-estranho (“você surfa?”).
O filme está recheado dessas ambiguidades e sutilezas que vão enriquecendo o tema da sexualidade em uma abordagem realista que a torna algo natural, e até arrisca dizer que é trivial, algo corajoso por estar abordando diversos tipos de atração, e muito mais digno de aplausos do que a bem menos sutil experiência lésbica em Azul é a Cor Mais Quente. Mais uma coincidência ou não, o filme premiado em Cannes também apresenta uma das personagens de cabelo azul, com a diferença de que em Beira-Mar o tom do cabelo preencher por completo seu significado metafórico, já que estamos falando das diferentes nuances entre a “terra firme e dura” (hétero?) e o “mar azul e calmo” (gay?).
Conseguindo tornar uma narrativa simples fascinante através das sutilezas que vão se acumulando em torno de relacionamentos coloridos naturalmente em um ambiente de cores frias e impessoais, Beira-Mar é um trabalho não só corajoso, como original em sua abordagem à sexualidade humana. O filme atravessa conceitos (e pré-conceitos) para tentar extrair a essência do que nos torna seres atraídos uns pelos outros, sem distinção de gênero. Afinal de contas, abaixo do mar também existe terra firme.
“Beira-mar” (Bra, 2015), escrito e dirigido por Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon, com Mateus Almada, Maurício Barcellos, Elisa Brittes e Fernando Hart.