A cena do filme Blonde mostra Ana de Armas, no papel de Marilyn Monroe se olhando no espelho. A câmera está posicionada por cima do ombro da atriz, passando uma imagem intimista dentro do camarim.

Blonde | Toda beleza será castigada

Espécie de autobiografia de Marylin Monron, Blonde é como uma Ferrari Amarela que bateu de frente com um muro de concreto. O carro é lindo e você vai parar, observar, achar um desperdício, pensar no valor do carro, no quanto aquele valor é irreal, julgará o dono por, provavelmente, ter explorado algum trabalhador, pensará no preço do seguro. Enfim, quanto mais você pensar na Ferrari, mais aquele acidente vai se tornar revoltante e esquecível, mesmo com o carro sendo lindo. Quanto mais você pensa em Blonde, mais ele se torna horrível.

E definitivamente “horrível” não é uma palavra exagerada diante do desastre que é o filme de Andrew Dominik, que realmente não teria porque chegar nesse lugar tão pantanoso depois de uma filmografia tão pertinente e impecável (Chopper, O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford e O Homem da Máfia são incríveis!). De seus outros filmes mantém um visual apurado, mas de algum lugar sinistro e perturbado ele traz para Blonde uma série enorme de preconceitos e ideias erradas.

Citando a crítica de cinema Gabriela Franco em suas redes sociais (prometi que iria fazer!), Blonde é “grosseiro, nojento, moralista e machista”. E isso é só a ponta desse iceberg. E não fica difícil saber se a culpa é do próprio Dominik ou do livro homônimo de Joyce Carol Oates. O cineasta, que também escreveu a adaptação, poderia tomar o caminho que quisesse, mas preferiu esse. Da mais pura beleza até o mais abjeto lixo.

Blonde e indescritivelmente lindo. Cada frame, movimento de câmera, ângulo e decisão estética é de uma força impressionante, uma mistura de pesadelo doloroso com uma iluminação delicada e cheia de vida e sentimentos. Dominik ainda coloca o espectador em um lugar incômodo onde o formato de tela espreme seus personagens e não os deixa respirar sem dificuldade. Uma experiência poderosa… mas que dura pouco mais de uns 40 minutos, o que vem depois disso é um enorme mal gosto.

Além do espectador, esperando se manter nesse lugar interessante e forte, a principal vítima de Blonde é Ana de Armas. Se era difícil acreditar que a atriz tivesse algo a ver com Marylin, o resultado não só cala a boca de quem não acreditava na escalação (como eu), como acaba sendo, sem sombra de dúvida a maior atuação de 2022 nos cinemas até agora. A atriz não só se torna essa figura deslumbrante, como entende toda tristeza da figura, some por trás do ícone e não salva o filme por muito pouco.

Dominik percebe a qualidade do trabalho de Ana de Armas e em certos momentos parece deixar sua câmera perdida diante dela, mas esquece de celebrar, tanto o trabalho dela, quanto a vida de Monroe. Blonde poderia ser sobre o sofrimento de Monroe e do quanto Hollywood a espremeu e sugou, mas não é sobre isso e sim sobre uma mulher que parece não ter qualidades que não sejam sua beleza, sensualidade e capacidade de chorar em todas cenas que aparece.

Dominik e o livro de Oates se equilibram em um caminho perigoso onde é possível “imprimir a lenda” ao invés de falar da verdade chata, mas soa moralista e monótono usar isso para pintar apena um mesmo quadro. Toda aquela tinta do começo do filme, que Dominik domina com maestria, depois é desperdiçada. Tanto na ausência de razões para aquelas decisões, quanto por parecer ter um fetiche em humilhar e destruir a personagem.

Ana de Armas, no papel de Marilyn Monroe, está colocando um vestido com a ajuda da figurinista nas cenas de Blonde.

O filme fica preto e branco, colorido, psicodélico e com formatos variados de tela sem absolutamente nenhuma razão. Em certo momento é possível achar que essas decisões estavam até sendo decididas baseadas em alguma aleatoriedade. Quase um “Bingo visual”. E tudo isso para a Monroe de Ana de Armas ficar melhor em seus piores momentos.

Depois de longuíssimas quase três horas de filme é difícil lembrar de sequer uma qualidade da personagem. Monroe criança é quase morta pela mãe e jogada em um orfanato, mas depois de adulta é estuprada, ofendida, desmoralizada, humilhada, apanha do marido ex-jogador, é violentada (leia aqui “abortada”), desacreditada, tratada como lixo pelo presidente democrata, “violentada” pelo Serviço Secreto e ainda é babaca com o Billy Wilder. Com certeza alguma coisa deve ter ficado fora da lista, mas do outro lado, o espectador só fica sabendo que ela leu Crime e Castigo e gosta de Tchecov.

A vontade de apagar qualquer qualidade da personagem é tão absoluta que o filme chega a esconder suas atuações, até aquelas que provocam lágrimas e palmas nos espectadores. Somente uma vez Dominik permite que sua personagem atue, mas seu trabalho é soterrado por um elogia à bunda de Monroe.

Se o objetivo de Dominik é mostrar o sofrimento de Monroe, talvez fosse melhor fazer um filme sobre esses homens horríveis que a cercaram. Um esforço mais dirigido para que o espectador odiasse todas aquelas pessoas, ao invés disso, de modo quase sádico ele prefere tornar lindo e espetacularizar o sofrimento daquela personagem. Pior ainda, se permitindo coloca-la diante de um moralista sentimento de culpa ao chegar, não só aos vexatórios takes do feto boiando em líquido amniótico e uma espécie de “ponto de vista uterino”, como coloca o próprio filho não nascido para cobrar Monroe de sua morte.

Além de Dominik não entender absolutamente nada do processo de gestação e provavelmente achar que com algumas poucas semanas de gravidez a mulher já tem um ser com olhos e boca falando por aí, tentar usar esse subterfúgio para construir sua personagem beira o mal caratismo e a mais completa irresponsabilidade com seus espectadores.

Dominik, em todo seu sadismo, prefere deixar sua câmera ligada observando os olhos de Monroe (ou os de Armas) humilhada pelo sexo oral no presidente, do que celebrar um dos maiores e mais importantes ícones da história do cinema. É lógico que Monroe teve suas dores, mas sobre tudo isso existia uma mulher que foi amada por uma geração inteira de pessoas e ainda é admirada até hoje, isso não está em Blonde.

Diante da vontade de mostrar o quanto Monroe sofreu, Dominik escolhe fazê-la sofrer mais um pouco, mas agora de modo deslumbrante, porém grotesco e, é claro “grosseiro, nojento, moralista e machista”.


“Blonde” (EUA, 2022); escrito e dirigido por Andrew Dominik, a partir do livro de Joyce Carl Oates; com Ana de Armas, Lily Fisher, Julianne Nicholson, Evan Williams, Xavier Samuel, Toby Huss, Bobby Cannavale e Adrian Brody


Trailer do Filme – Blonde

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