Novas versões de contos de fadas são uma das ondas do momento em Hollywood – e se a moda ainda não trouxe à tona nenhum desastre, também não apresentou nenhum filme que justifique a popularidade. Vem da Espanha então o melhor exemplar dessa revitalização, que traz uma Branca de Neve toureira na Sevilha de 1920 e consegue se manter fiel à história original enquanto, ao mesmo tempo, funciona por si próprio e insere o local e período em que é ambientado na narrativa.
A essência é a mesma do conto dos Irmãos Grimm: a protagonista, aqui, é a bela e bondosa Carmencita (Sofía Oria), filha de uma cantora e de um famoso toureiro. Sua mãe morreu durante um parto complicado após o pai da garota ter sofrido um acidente que o deixou paraplégico. Ele então fica sob os cuidados da maldosa e ambiciosa enfermeira Encarna (Maribel Verdú), que quer – e consegue – se casar com ele em busca de seu dinheiro e fama. Porém, após o falecimento do marido, Encarna ordena a morte da jovem garota (vivida agora por Macarena García) – que, à beira da morte, é encontrada por um grupo de anões toureiros, já que herdou o talento para a tourada do pai.
Para recriar o clima da década de 20, o diretor e roteirista Pablo Berger escolheu realizar um filme totalmente mudo e em preto e branco. Mas, ao contrário de O Artista, que brinca com o gênero, esta é uma obra que realmente poderia ter sido realizada naquela época, sendo inclusive filmada com razão de aspecto 1.33:1 (tela quadrada). O filme se beneficia, assim, da belíssima fotografia de Kiko de la Rica e da música de Alfonso de Vilallonga.
Mergulhada no gótico, o próprio preto e branco e belos planos-detalhe criam uma atmosfera sombria que combina com a história contada e com o tom dos contos de fada originais. Berger consegue passar suas mensagens através de interessantes sutilezas, como na cena de tourada que abre o filme: o olhar preocupado de Carmen (Inma Cuesta) após não conseguir pegar o chapéu que Antonio Villalta (Daniel Giménez Cacho) jogou para ela, já anuncia que alguma tragédia está para acontecer. A morte de uma personagem, por exemplo, é anunciada quando vemos um vestido preto sendo lavado. Na cena em que Carmencita dança com a avó, os planos cada vez mais fechados e os cortes cada vez mais rápidos criam uma sensação de urgência mesmo enquanto a ação continua a mesma. Aliás, os planos fechados e os cortes rápidos são um recurso bem utilizado para essa função, sem que se torne exagerado.
Esta versão de Branca de Neve é calcada no realismo: aqui, não há espelhos mágicos ou príncipes encantados – mas a maçã envenenada permanece. Aliás, é curioso notar que, aparentemente, esta história se passa em um universo que conhece o conto dos Irmãos Grimm, já que os anões apelidam a jovem, que perdeu a memória após sua quase-morte, de Branca de Neve, e renomeiam a trupe de “Branca de Neve e os 7 Anões” em referência ao conto, mesmo, aqui, sendo apenas seis – o que serve como homenagem à fonte, mas, na prática, não é muito funcional.
Branca de Neve divide com suas “versões hollywoodianas” Espelho, Espelho Meu e Branca de Neve e o Caçador a atualização da protagonista que, não fazendo muita coisa na versão original é, aqui, heroína de sua própria história, decidida e corajosa, vivida com talento primeiro por Sofía Oria e, depois, por Macarena García – a pequena, principalmente, merece destaque. Já Maribel Verdú parece se divertir no papel de Encarna, e cria uma figura verdadeiramente assustadora e ameaçadora, no ponto exato para que a madrasta não se torne uma caricatura. Aliás, são os personagens e situações bem construídas que tornam este um filme tão eficiente, pois as pessoas e suas relações são o coração dos contos de fadas.
E não é à toa que estes contos sobrevivem até hoje e que novas versões continuem sendo contadas, mas é surpreendente que um gênero tão rico tenha sido desperdiçado em suas versões mais recentes. Torçamos para que Hollywood perceba os méritos desta obra e, também, para que a Espanha continue o belo trabalho aqui mostrado.
Blancanieves, escrito e dirigido por Pablo Berger, com Macarena García, Maribel Verdú, Sofía Oria, Daniel Giménez Cacho, Inma Cuesta e Ángela Molina.