Cinefilia Crônica | Made in Brazil


[dropcap]E[/dropcap]m uma sexta-feira fria, não tinha vontade alguma de sair. Na porta do meu quarto, Gabriela me encarava. O relógio denunciava a hora do passeio pelo quarteirão. Anda pouco, já está velhinha, mas me cobra o rolê com a coleira nova, comprada depois da última consulta ao veterinário. Gabriela é a vira-lata aqui de casa.

Antes de desligar o computador, encerrar o expediente e ver a rua, entrei no site do cinema da rua. Sou desses privilegiados, com umas telonas a dois quarteirões de onde moro. Aqui, a cozinha fica no centro e meu quarto na periferia de uma cidade caminhando na linha tênue entre a vida metropolitana e uma cultura provinciana.

Estranhei, por alguns segundos, não haver nenhum filme brasileiro em cartaz. Pensei naquela estreia da semana passada e seus prêmios em diversos festivais. Mas, perto de casa, só tinham espaço as produções com muitos tiros, porrada, peitos expostos e gritaria. Com essas, confesso não ter muita paciência, não.

Tampouco tinha paciência com Gabriela e suas patas frenéticas ansiando pela volta diária.

Caminhamos, caminhamos. Conversamos com o vizinho mais chegado, ele perguntou o que faria no fim de semana. Falei do cinema, da vantagem de tê-lo a poucos passos de casa, da desvantagem do pouco espaço ao que é feito tão perto de nós.

Ele riu do meu tipo exigente, nunca foi ao cinema para ver filmes brasileiros, achava estranho. Começou a enumerar um e outro defeito das produções destas terras. Rebati mostrando coisas piores em sua lista de preferência, ele foi obrigado a concordar. E ainda pediu umas dicas. Seria bom não ter de se preocupar com legendas ou dublagens, brincou.

Gabriela rodou, latiu, me encheu, dei uns gritos. Voltamos para casa. Voltei para o computador, queria encontrar um cinema com o filme brasileiro. Ela ficou rodando, correndo atrás do próprio rabo. Precisaria pegar um ônibus para assisti-lo, mesmo tendo um cinema quase ao lado de casa.
Procurei em dois ou três aqui da região, pedi ajuda a uma amiga. Segundo ela, a vantagem desse cinema meio escondido era ter salas sempre vazias, pouca gente falando ou chamando atenção depois de passar por uma praça de alimentação de shopping.

Comprei meu ingresso pela internet mesmo, seria um bom programa para o sábado à tarde. Desliguei o celular para não correr o risco de ver meu pouco dinheiro virar doses em copos de vidro, seguidas de uma ressaca e esquecimentos.

Fui deitar. Resolvi ler um livro. Aquele inacabado, com crônicas de Nelson Rodrigues. Abri nesse trecho: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Compreendi um pouco mais o cinema da minha rua. Antes de apagar a luz, cobri minha cachorra. Gabriela dormia tranquila, mas parecia sentir frio.

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