Cinefilia Crônica | Na volta eu vejo


[dropcap]M[/dropcap]eus pais tiveram que olhar para trás no supermercado de nome francês e logotipo de arco e flecha. Uma prateleira enorme chamou minha atenção e desisti de empurrar o carrinho, ainda que vagarosamente, para dar prosseguimento às compras do mês. O lançamento da fita VHS de O Rei Leão era comentado pela molecada da rua e eu não queria ficar para trás.

Pedi para comprarem uma fita, só uma fita. Eles disseram que comprariam, é claro, mas na volta.

As crianças mais sagazes sabem que a volta será por outro caminho, uma velha estratégia já discutida na hora do recreio. Não saí do lugar e chorei de dar inveja a dramalhões mexicanos. Meus pais foram obrigados a sucumbir à minha estratégia, também discutida na hora do recreio.
Assisti àquele filme logo que chegamos em casa, tomei uma bronca por não ajudar a carregar as sacolas. Voltei a dar play no videocassete antes de sair. E ao voltar da escola. E no fim de semana. E enquanto almoçava. E na ceia de Natal. Decorei as falas, sabia as músicas, era capaz de narrar a animação do começo ao fim com a mesma animação da primeira vez. Apelidei duplas de gordo e magro de Timão e Pumba, cantei “hoje à noite aqui na selva quem dorme é o leão” para pegar no sono e entoei gritos estranhos em todo começo de ciclo, como um macaco levantando Simba para apresentá-lo à selva.

Ainda hoje, nos almoços de domingo, usamos bordões que nos remetem a fragmentos da animação. As hienas, por exemplo, são a referência familiar para falar de quem trama pelas escondidas. Nunca as vemos com bons olhos.

O Rei Leão é muito marcante para mim e traumático demais para meus pais. Deve ser ter sido por isso que me recusei a acompanhar o mesmo grupo de amigos indo ao cinema no último domingo. Se tive minhas restrições à segunda animação da franquia, não me conformaria com outra dublagem e o visual de animais de verdade dessa nova versão. Para ver leões de verdade, me conformo com os canais de documentários na floresta.

Já me acostumei a ser chamado de chato um milhão de vezes, mas fiquei descontente com O Rei Leão nas telonas. Que reestreassem a velha versão, a minha versão. Seria aceitável. Mas sinto como se me roubassem um pouco da infância. Eles não tinham o direito de refilmar toda aquela história e pouco me importam os direitos a arrecadar um bilhão de dólares para estúdios gananciosos.

Se no domingo estivesse sentado em uma das poltronas comendo pipoca, me sentiria adúltero. Olharia para os lados, com medo de ser pego no flagra por outra criança que teve sua fita VHS verde comprada na base da chantagem do choro infantil. Ela me acusaria e eu seria punido com severidade pelo tribunal da consciência limpa.

Preferi ficar em casa e procurar a velha versão. Cantei as músicas, lembrei os momentos, chorei na morte do Mufasa e me senti em paz com meu travesseiro. Dormi como um leão e, na manhã seguinte, me espreguicei fazendo grunhidos estranhos.

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