Cinema Sem Y | A (falta de) diversidade no cinema brasileiro


[dropcap]O[/dropcap] mercado brasileiro é uma indústria protagonizada por homens brancos. Assim começa a reportagem da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) sobre o recentemente divulgado levantamento que a organização fez quanto à diversidade e inclusão da indústria audiovisual brasileira não apenas na frente das câmeras, mas também atrás delas. Os números, é claro (ainda que muitos se surpreendam ou sequer pensem nisso), estão intimamente relacionados.

Em minha coluna sobre os escândalos sexuais que vieram à tona recentemente em Hollywood, falei sobre como a indústria audiovisual torna-se propícia para esses abusos e assédios por ser controlada majoritariamente por homens brancos. Isso faz com que mulheres e minorias sejam não apenas preteridos quanto a oportunidades de trabalho em relação a esse grupo, mas também adentrem um universo que, em maior ou menor grau, mostra-se tóxico e até mesmo perigoso para eles.

O estudo da ANCINE analisou os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente nos cinemas no ano de 2016. A partir de agora, esse levantamento será feito anualmente, visando acompanhar a evolução da diversidade na indústria e tomar medidas estratégicas para melhorar e aumentar a representação na frente e atrás das telas. Aqui, você pode conferir o estudo completo.

Os números são preocupantes, ainda que não surpreendentes para quem se preocupa com a inclusão no mundo do audiovisual. Mas, considerando que muitos brasileiros preferem fechar os olhos para a discriminação racial por acreditarem que esse tipo de coisa não existe em um país misigenado como o Brasil, é fundamental divulgarmos e discutirmos essas informações. Enquanto isso, uma grande parcela da população continua acreditando que o feminismo é um exagero, uma bobagem. Se você chegou até aqui, provavelmente não pensa dessa forma, mas deve saber que são opiniões perigosamente comuns, pois demonstram um modo de pensar que contribui para a manutenção dos sistemas racistas e sexistas da sociedade em que vivemos.

Dados do IBGE de 2015 são citados pela ANCINE para comparar os números do Brasil e como eles são refletidos na indústria audiovisual. Em nosso país, 51,5% da população é formada por mulheres, enquanto os homens somam 48,5%. Trata-se, portanto, de uma divisão bem balanceada, não é? O mesmo pode ser dito da divisão racial: 54% da população se identifica como negra e 45,1% como branca. As pessoas amarelas e indígenas representam 0,90% da população. Se alguém de fora analisasse nossas produções audiovisuais, dificilmente acreditaria que o Brasil seja um país em que os negros somam mais da metade da população total.

Afinal, dos 142 longas-metragens analisados, apenas 3 deles foram dirigidos por homens negros. As mulheres negras não tiveram espaço algum. Enquanto isso, 107 filmes foram comandados por homens brancos, e apenas 28 por mulheres. Os números são praticamente iguais quando avaliamos quem escreveu o roteiro dessas obras: 3 homens negros, nenhuma mulher negra, 85 homens brancos e 23 mulheres. Os números estão bastante conectados.

Cinema sem Y

Como a ANCINE descobriu, ter um diretor negro aumenta em 43% as chances de que o roteirista também seja negro. Isso também aprimora as chances de que o elenco da produção conte com mais de uma atriz ou ator negro, que sobem para 65,8%. Já o fato de o roteirista ser negro traz chances 52,5% maiores disso. Não foi possível fazer essa análise com as obras dirigidas por mulheres, já que o número é baixo demais para identificar alguma tendência.

A produção executiva é a única função em que as mulheres brancas comandam a cena: elas comandaram 52 dos filmes analisados, enquanto 37 homens brancos tiveram esse cargo. Houve, ainda, 37 equipes mistas, misturando mulheres e homens brancos. Três homens negros atuaram como produtores executivos, e nenhuma mulher negra ¿ elas aparecem aqui apenas em 2 obras, trabalhando como produtoras executivas ao lado de outros profissionais brancos de mesmo cargo. Essa é a única função técnica em que as mulheres negras marcaram presença. Os números são um tanto preocupantes, já que demonstras que essas mulheres brancas em uma alta posição de comando não conseguiram, ou não tentaram, refletir a presença feminina nos demais cargos. Entretanto, como a ANCINE não analisou o quanto a inclusão varia nos filmes produzidos por homens ou por mulheres, não é possível analisar essa questão mais a fundo.

Na direção de fotografia, a dominação masculina é ainda maior. São 121 longas fotografados por homens (aqui, não foi analisada a questão de raça) e apenas 11 por mulheres. Em 3 produções, houve um time de gênero misto exercendo esse cargo. O Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil (DAFB) lista, atualmente, menos de 60 mulheres que exercem esse cargo no cinema brasileiro. Trata-se de um ciclo vicioso: a falta de oportunidade faz com que muitas desistam ou nem considerem esse caminho e, consequentemente, a presença delas torna-se menos expressiva. Por isso, iniciativas como o DAFB e o próprio estudo da ANCINE são fundamentais para trazer à tona as experiências, talentos e dificuldades das mulheres e minorias na indústria audiovisual.

Partindo para as análises quanto ao elenco dos longas brasileiros lançados em 2016, a ANCINE contabilizou 480 atores e 321 atrizes nesses trabalhos. Se o percentual de mulheres na população brasileira é de 51,5%, o índice cai para 40% quanto à presença delas nas telonas. Falando de raça, o número é assustador: são 651 profissionais brancos em meio a apenas 70 negros, 37 pardos e 4 amarelos. O Brasil conta com uma população em que os negros somam 54%, mas apenas 13,3% dos personagens das obras analisadas se identificam como pertencendo a essa raça.

É inegável que há alguns (alguns!) atores e atrizes negros que conquistaram um sucesso maior e, hoje, interpretam personagens multifacetados, diferentes e em uma maior quantidade de produções. Entretanto, quantas novelas e filmes ainda não trazem um elenco formado quase que somente por atores brancos e colocam os poucos negros da produção em papéis menores, quase sempre em um cargo de servitude em relação a um personagem ou família branca? É claro que não há nada de errado com essas profissões ¿ o problema é que, na ficção, elas abraçam a ideia de que não há outras oportunidades para as pessoas negras e, além disso, sempre constroem esses personagens pela visão dos homens e mulheres brancos que interagem com eles, e não como indivíduos complexos, detentores de arcos dramáticos próprios.

Quando 68% dos filmes de ficção e 63% dos documentários são roteirizados por homens, temos uma indústria audiovisual em que a grande maioria das histórias é contada pelo ponto de vista masculino. As histórias que eles contam podem ser universais, de todos nós, mas (ainda) não há espaço para essa universalidade no mundo do cinema brasileiro.

O que nós, enquanto espectadores, podemos fazer? Para muitos brasileiros, apoiar o nosso cinema nas salas de exibição nem sempre é possível. Afinal, além de tudo o que discutimos aqui, ainda precisamos levar em consideração um modelo de distribuição bastante complicado que faz com que muitas obras, especialmente as independentes ou menores, não cheguem a todas as cidades, ou fiquem em cartaz por apenas uma semana, por exemplo. Enquanto isso, as produções das grandes empresas, como a Globo, alcançam um público muito mais amplo. Mas acredite: ir ao cinema e demonstrar financeiramente seu interesse por obras inclusivas conta muito. Para complementar, discutir esse assunto, louvar filmes com equipes e elencos diversificados e chamar a atenção daqueles em que homens brancos, e até mesmo mulheres brancas, dominam também, nos ajuda a abrir os olhos e fugir do status quo a que nossa indústria audiovisual ainda se amarra.

Em junho deste ano, a ANCINE divulgará o seu estudo quanto à diversidade de gênero e de raça nos longas-metragens brasileiros lançados em 2017. Enquanto isso, fique aqui com uma pequena lista de algumas obras que chegaram aos cinemas nacionais no ano passado e que demonstram o poder e a importância da inclusão na arte:

  • Divinas Divas, dirigido por Leandra Leal, documentário que acompanha o reencontro da primeira geração de travestis que marcou presença nos teatros da Cinelândia nos anos 60. Rogéria, Jane Di Castro e Valéria estão entre as divas que compartilham com Leal todos os desafios e conquistas do grupo.
  • Como Nossos Pais, dirigido e protagonizado por mulheres ¿ aqui, a cineasta Laís Bodanzky, que assina o roteiro ao lado de seu esposo e parceiro habitual Luiz Bolognesi, discute identidade, casamento e maternidade pelo olhar de Rosa, interpretada por Maria Ribeiro.
  • Clarisse, ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, longa-metragem de estética e história forte que é dirigido por Petrus Cariry, mas é centrado em uma protagonista feminina, a personagem-título vivida por Sabrina Greve. Ao visitar o pai, que está morrendo em uma cidadezinha cearense, Clarisse descobre segredos perturbadores sobre sua infância e sobre seu já falecido irmão.
  • Corpo Elétrico, longa-metragem protagonizado por um jovem gay paraibano interpretado pelo ator Kelner Macêdo. Destaque para a bela e elogiada direção de fotografia Andrea Cappela!

2 Comentários. Deixe novo

  • Mariana González
    01/03/2018 0:41

    Concordo, Ricardo! O problema da distribuição torna todos os outros pontos ainda mais complicados. Quando temos filmes que se preocupam com a inclusão e que trazem pontos de vista não tão comuns no nosso cinema, eles chegam até uma parcela mínima do público. O cinema brasileiro é incrível, mas ainda tem muito a melhorar enquanto indústria 🙁

  • Ricardo Vieira da Silva
    27/02/2018 14:38

    Temos que falar sobre isso, sim. A produção audiovisual brasileira é grande e pouquíssimo vista e discutida. O mercado de salas de exibição é pequeno e focado excessivamente em blockbusters e viciado em penduricalhos inúteis como 3D, 4D, 5D, Imax além de querer vender jujuba a preço de ouro.
    Quando se percebe que, além de todos esses obstáculos, a sociedade não se vê representada nas telas, o povo foge dos cinemas mesmo.
    Muito dinheiro se gasta (público) para fazer cinema e muito pouco se incentiva a ganhar dinheiro com a arte, devolvendo os incentivos.

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