Cinema Sem Y | O feminismo natural de Mad Max

** O texto a seguir contém detalhes sobre a trama de Mad Max: Estrada da Fúria **


[dropcap]N[/dropcap]o quarto filme da franquia Mad Max, o personagem-título, desta vez vivido por Tom Hardy, é o passageiro da história conduzida por Imperator Furiosa, personagem de Charlize Theron. Habitado por diversas mulheres complexas, o longa coloca os objetivos, sonhos, esperanças e lutas delas no centro da narrativa – criando, assim, um filme de ação que retrata como um grupo de pessoas buscando uma vida mais digna conseguiu derrubar um líder opressor.

A trama de Mad Max: Estrada da Fúria é bastante complexa em sua simplicidade: Furiosa, uma das Imperators de Immortan Joe, parte da Cidadela levando as esposas do líder escondidas em seu veículo – depois de anos sofrendo violência e abuso e sendo forçadas a ver seus bebês afastados delas e criados naquele ambiente terrível, as mulheres se uniram e resolveram buscar um lugar onde pudessem viver em liberdade e como seres humanos: “não somos coisas”, elas repetem com frequência. É assim que Immortan Joe as enxerga – como objetos, como sua propriedade, como meios de conseguir herdeiros.

E, assim sendo, ele as veste com pequenos panos que mal cobrem seus belos corpos – não apenas atraentes, aquelas mulheres são também algumas das poucas pessoas que, naquele escasso mundo pós-apocalíptico, chegaram à idade adulta sem ser tomadas por mutilações, tumores e outros males.

E aqui reside o primeiro fator que faz de Mad Max um filme, em sua essência, feminista: apesar de valorizadas na sociedade em que residem apenas por seus corpos, suas capacidades de dar prazer ao líder e de procriar, Splendid (Rosie Huntington-Whiteley), Toast (Zoë Kravitz), Capable (Riley Keough), The Dag (Abbey Lee) e Cheedo (Courtney Eaton) jamais são sexualizadas pelo filme. Quando as vemos se refrescando e se limpando com uma mangueira, a câmera não passeia por seus corpos seminus; a imagem é simplesmente de pessoas aproveitando uma rara chance de utilizar água. Da mesma forma, a maioria dos cineastas homens, considerando a situação dessas mulheres, “aproveitaria a chance” de incluir pelo menos uma – bastante gráfica, dolorosa e desnecessária – cena de estupro. Sabemos pelo que elas passaram – está escancarado na gravidez avançada de Splendid. Mostrar para a audiência não acrescentaria nada à história, apenas glorificaria a violência sofrida por mulheres.

Cinema sem Y: Mad Max

O diretor e roteirista George Miller, porém, não glorifica a violência em nenhuma de suas formas, em Estrada da Fúria. As cenas de ação são fascinantes, divertidíssimas, insanas – e exaustivas. Os personagens encontram-se destruídos, à beira de não aguentar mais, mas devem continuar seguindo em frente. Ao final do filme, enfim conquistam a tão sonhada paz e liberdade. Max é então atormentado por toda a violência que presenciou (e protagonizou) e pelo sofrimento que não conseguiu impedir. Furiosa busca retomar a existência pacífica que teve um dia. As esposas buscam a vida digna que elas sabem ser direito delas, mas que jamais conheceram. E o que diverte a plateia são explosões, fogos, veículos, perseguições – a violência contra outros seres humanos é relativamente rara e discreta. Quando acontece, é para ilustrar algo importante. Max e Furiosa carregam o peso do que fizeram e viveram, enquanto as esposas – apesar de tudo o que sofreram até aquele ponto – pregam a não-violência a não ser que seja extremamente necessário.

As cinco mulheres, aliás, tem pouca ou nenhuma prática com armas, facas, carros – resumindo, nenhuma habilidade necessária para auxilar em sua fuga da Cidadela. Ao invés de mantê-las afastadas da ação central, porém, o obstáculo é logo contornado através da determinação que elas tem de contribuir para a missão, aprendendo aos poucos a ajudar – e, o mais importante, ajudando umas às outras nisso.

É este o ponto central que torna Estrada da Fúria inovador e diferente dentro de seu gênero. Se outras produções recentes trouxeram personagens femininas memoráveis, como Mako Mori, em Círculo de Fogo, e Rita Vrataski, em No Limite do Amanhã, elas são as únicas mulheres de destaque em um universo predominantemente masculino. No novo Mad Max, as mulheres dominam o longa – em número e em importância. Com vivências, experiências e conhecimentos tão diferentes, as mulheres trabalham juntas, sempre se ajudando, apoiando e encontrando força e esperança umas nas outras. São as palavras de Splendid – “Nós não somos coisas” – que motivam a fuga das esposas e que as mantêm na estrada mesmo quando a missão parece impossível. É a comunidade formada apenas por mulheres que faz permanecer em Furiosa o desejo de retornar ao lar e à paz que ela um dia conheceu. E o filme reconhece aquelas mulheres como infinitamente mais capazes de organizar uma comunidade funcional e digna do que os homens que elas derrotam – elas possuem a capacidade de salvar o mundo que eles mataram.

Enquanto isso, o protagonista levanta discussões sobre as falhas da hipermasculinidade: atormentado por não ter conseguido cumprir seu papel de protetor da família, Max tenta renegar sentimentos, emoções e quaisquer conexões humanas – algo que, ao longo de Estrada da Fúria, ele começa a reaprender a aceitar. Inicialmente forçado a ajudar Furiosa, ele vai, aos poucos, acreditando cada vez mais nos planos daquela mulher, embarcando em uma silenciosa jornada emocional que o leva, finalmente, a reencontrar a esperança e sua própria humanidade. A missão e a trama centrais são de Furiosa – Max está ali para ajudá-la.

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Incluindo em seu terceiro ato um grupo de mulheres mais velhas que, além de terem conseguido sobreviver no deserto com pouquíssimos recursos, são também tão fisicamente capazes quanto os homens de Immortan Joe – mesmo que preguem a paz -, Mad Max mostra também o quanto passar no Teste de Bechdel é um requisito mínimo a ser exigido de um filme e que, mesmo assim, tantas produções falham em trazer duas mulheres conversando sobre algo que não seja um homem. Aqui, as mulheres são seres humanos próprios, individuais, não determinadas por sua relação com Max ou qualquer outro homem. Elas são donas e agentes de suas histórias, tomando suas próprias decisões e arcando com as consequências.

A escritora Kameron Hurley reconhece Furiosa como a heroína de Estrada da Fúria:

“Para quem viu os filmes anteriores de Mad Max, Max meio que acaba encontrando esses lugares bizarros, apronta algumas, e depois segue em sua jornada. Ele é o viajante, a testemunha para aquelas histórias. Da mesma força, ele tropeça na história de Furiosa, essa coisa enorme e complexa que claramente está planejada há muito tempo e já está acontecendo a todo vapor.

Max não é o herói. Ele é a testemunha. Assim como os war boys gritando uns para os outros “Testemunhe-me!”, é ele quem continua seguindo adiante. Ele é o herói masculino pós-apocalíptico dos anos 80, amarrado a nada e a ninguém, então ele pode continuar seguindo adiante sem parar – assim como ele, inevitavelmente, faz aqui -, deixando os verdadeiros heróis para lidar com a bagunça de limpar tudo e de governar um novo mundo.”

Mesmo sem uma mensagem tão forte quanto a deste novo filme, Mad Max sempre foi habitado por mulheres fortes e tão capazes quanto os homens, e livre de cenas exploratórias ou violentas contra elas.

Em entrevista à Vanity Fair, George Miller se declara feminista e, além disso, parece entender que, por seu gênero, inevitavelmente há situações e condições que ele não entenderá totalmente e, por isso, é necessário ouvir mulheres para melhor compreendê-las – algo essencial para os homens que querem contribuir ativamente para a luta feminista. A esposa do cineasta, Margaret Sixel, editou o filme, e Miller atribui a ela o fato de que Estrada da Fúria “não se parece com nenhum outro filme de ação”. Para retratar as consequências do abuso sofrido pelas esposas e da violência sofrida (e causada) por Furiosa, ele levou a ativista feminista Eve Ensler para visitar o set do filme na Namíbia, onde ela ofereceu um workshop às cinco atrizes para que elas conhecessem a realidade de mulheres que passaram por situações de violência extrema, especialmente em zonas de guerra. Os workshops acabaram sendo visitados por outros integrantes da equipe, também.

Em Estrada da Fúria, Miller teve o objetivo de criar personagens femininas reais, complexas e capazes, escrevendo-as como seres humanos e fazendo o filme tratá-las assim. O que, claro, não agradou aos chamados “ativistas dos direitos dos homens”, que ameaçaram boicotar o filme porque a produção estaria “forçando o feminismo” e que o filme faria com que todos os próximos filmes de ação seguissem fizessem o mesmo.

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Mas, como o longa mostra, não são apenas as mulheres que sofrem nas mãos de Immortan Joe – claro que não. O tirano controla toda e qualquer forma de produção, passando pelos bebês de suas esposas e pelo leite materno das mulheres que vemos tendo o leite de seus seios sugados por dolorosas máquinas. Max é sequestrado para servir de “bolsa de sangue” aos war boys, garotos que vivem duas ou três décadas servindo cegamente a seu líder, guiados por promessas de reencontros nos portões de Valhalla e de que não há glória maior do que morrer em nome do ditador – afinal, seus corpos estão sendo comidos por tumores e doenças, de qualquer jeito.

Assim, foi de forma natural que Miller realizou um filme feminista – se fosse de outra forma, provavelmente não teria sido tão bem sucedido. Há uma relação de igualdade entre Max e Furiosa – ele jamais questiona as habilidades ou decisões dela, jamais tenta tomar controle sobre sua missão. Charlize Theron falou sobre isso na coletiva de imprensa do filme em Cannes:

“É interessante fazer a divulgação do filme e ver as pessoas virem até você falando sobre ‘Ah, mulheres fortes, mulheres fortes!’. Não, na verdade somos apenas mulheres neste filme. Nós tivemos um cineasta que entendeu que a verdade é que mulheres são poderosas o suficiente, e que nós não queremos ser postas em pedestais ou feitas como se fôssemos bizarramente fortes ou capazes de fazer coisas que não somos capazes de fazer, mas o que nós somos capazes de fazer é muito interessante.”

É algo tão simples, tão óbvio – para quem não está tão familiarizado ou não pensou tanto sobre a situação das mulheres no cinema e na cultura em geral, é até difícil de acreditar que isso ainda não tenha sido percebido de forma mais ampla. Mad Max: Estrada da Fúria trata suas mulheres de forma real e humana, abraçando uma igualdade natural – este é um filme que poderia ter sido produzido em um mundo em que tudo o que dizemos neste texto não fosse surpreendente. Mas continua sendo e ainda será por um bom tempo e, por isso, esta é uma produção extremamente bem-vinda.

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11 Comentários. Deixe novo

  • acho que há uma necessidade narrativa delas parecerem modelos da Victória Secret, elas era o Harem do Immortan Joe, eram aquelas que dentre todas as outras eras escolhidas para serem sexualmente abusadas e gerarem os filhos dele. Então não faria sentido que ele escolhesse para isso algo que não o esteriótipo de beleza que a sociedade carrega consigo.

  • Só um detalhe que talvez tenha lhe escapado: Cada filme é um filme. O estupro em um não quer dizer a mesma coisa, muito menos significar algo semelhante em dois filmes tão diferentes quanto Irreversível e Mad Max. A Mariana não se contradiz não…

  • Mulheres, sim! Mas que mais pareciam ter sido roubadas de um desfile da Victoria’s Secrets. Ainda chateada por isso 🙁

  • Wanderley Caloni
    22/08/2015 16:15

    Acho que só o fato de existirem as parideiras é escancarar o suficiente a realidade daquele mundo, tão suficiente que basta isso para que percebamos como a fuga é necessária e vital para que exista o mínimo de esperança de consertar as coisas daquele mundo de cabeça pra baixo.

  • O que eu quis dizer é que o cinema não glorifica e nem banaliza o estupro como faz com outras formas de violência. Torturas, homicídios, mutilações e coisas piores são mostradas de forma nua e crua. E o público tende a aceitar numa boa.

    Já o estupro é considerado um tabu nesse sentido. Você mesma se contradiz aqui. No primeiro comentário, diz que a ausência de cenas de estupro é uma forma do filme ser “sério”. Já em Irreversível, ele é sério porque mostra o estupro em todo o seu horror.

    É como dizer que uma história tem mérito por mostrar o cadáver mas não o homicídio, já que o crime já está “escancarado” na narrativa. O visual só serviria para mostrar gente sendo morta. Qualquer tipo de violência cabe nesse exemplo.

    Mad Max usou a opção de não mostrar estupros. Ótimo. Mas ele não é “sério” por isso. As cenas não combinariam com a proposta do filme, concordo. Só que outras formas de violência e desespero são colocadas como se não fossem nada. De forma explícita.

  • Exatamente! Mas são poucos os filmes que dão à violência contra a mulher o peso e a seriedade que isso tem — “Irreversível” faz isso. Quase sempre, é para mostrar os belos corpos das atrizes ensanguentados e sem vida, e para justificar as ações futuras das personagens no caso de antagonistas (“300: A Ascensão do Império” fez isso com a personagem da Eva Green). Em “A Estrada da Fúria”, é um mérito não mostrar essas cenas de violência sexual porque elas já estão mais do que escancaradas na narrativa — o visual não acrescentaria nada além de trazer a imagem de mulheres sendo violentadas.

  • Nunca vi o estupro como algo a ser glorificado. Aliás, o homicídio no cinema é MUITO mais glorificado, se formos pensar assim. Ou a tortura. Uma das coisas mais horrendas que eu já assisti foi “Irreversível”. Não senti a mesma coisa assistindo “John Wick”, onde a pilha de corpos é imensa.

  • Mas foi exatamente essa a intenção do filme — trazer mulheres que ficam lado a lado dos homens, como iguais.

    E é óbvio que as mortes da Splendid e de seu bebê chocam e são tristes, mas a violência sexual é frequentemente “glorificada” no cinema, e é ótimo ver um filme de ação que trate do assunto de forma séria.

  • Nah, Mad Max é melhor. Não é todo esse “baluarte” feminista que querem pintar. A crítica exposta aqui é tendenciosa. Estupro não pode, mas atropelar a mulher grávida com todo o “gore” que se tem direito pode? Bom, talvez isso realmente tenha a ver com feminismo. Afinal, fetos são descartáveis para o movimento.

    Mas não foi bem essa a mensagem do filme. Depois da Tina Turner ninguém queria ver em Mad Max uma princesa da Disney. Ao contrário do que a atriz quis passar, Furiosa é sim uma mulher forte e fora do comum. Assim como o Max. O equilíbrio entre os dois ficou ótimo.

  • Esse não é o filme pra ti, então! Recomendo “Transformers”.

  • E, no entanto, se o filme se chamasse “Furiosa: a história de uma mulher poderosa e independente lutando contra a opressão” ele seria um fracasso de público. Porque a galera queria ver era o Max, explosões e porradaria. E não encheção de saco feminista.

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