Entra ano, sai ano, as reclamações decorrentes do anúncio dos indicados ao Oscar parecem se repetir: poucas mulheres. Muitos homens. Muitas pessoas brancas. Obras medíocres de pessoas brancas e do gênero masculino preferidas em vez de obras incríveis de pessoas não-brancas e/ou do gênero feminino.
Pois o que acontece é que, apesar de campanhas como a #OscarsSoWhite e de a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas convidar todo ano diversas novas pessoas para integrar o corpo de votantes à principal premiação da indústria cinematográfica norte-americana, qualquer mínimo sinal de progresso no Oscar é ilusório e raso. No ano seguinte, o status quo retorna com tudo.
Demorou quase 50 anos para que uma mulher — Lina Wertmüller, por Pasqualino Sete Belezas — fosse indicada ao Oscar de melhor direção. Mas outros 30 anos se passaram até que uma cineasta efetivamente levasse o prêmio: Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror. Dá para contar nos dedos de uma mão quantas mulheres foram indicadas na categoria, mas parece que outros vários e vários anos se passarão antes que outra ganhe. Depois de indicar Greta Gerwig em 2017 por Lady Bird, ela absurdamente ficou de fora este ano, ainda que seu Adoráveis Mulheres seja não apenas um avanço gigantesco em relação ao seu primeiro (e excelente) filme como diretora-solo, mas também um dos melhores e mais bem dirigidos filmes do ano.
Mas essa auto-evolução cinematográfica não tem espaço na Academia quando se trata de cineastas mulheres. Nenhuma das quatro indicadas e nem mesmo a única vencedora da categoria foram lembradas uma segunda vez, o que deixa claro o pensamento da Academia: fizemos nossa parte e agora já está bom.
É claro que, entra ano, sai ano, há inúmeros exemplos de filmes excepcionais feitos por homens brancos que também ficam de fora da enxuta lista de indicados. Afinal, trata-se de uma competição e não há espaço para todos; mais do que isso, o escopo de filmes considerados “oscarizáveis” é bastante restrito, ainda que vez ou outra apareça uma exceção à regra e algo um pouco menos óbvio receba a estatueta.
Porém, antes de mais nada, a premiação é como o cineasta sul-coreano Bong Joon-ho descreveu em entrevista a E. Alex Jung, da Vulture: uma cerimônia bastante local, ou seja, altamente focada não apenas em cinema norte-americano, mas em cinema hollywoodiano. E o cinema hollywoodiano segue um padrão estético, narrativo e de linguagem e ainda dá um espaço altamente limitado para quem não é um homem branco norte-americano.
Por isso, uma das grandes surpresas quando os indicados foram anunciados, no dia 13 de janeiro, foi a presença de Democracia em Vertigem entre os filmes concorrendo ao prêmio de melhor documentário de longa-metragem. Dirigido por Petra Costa, a obra fez bastante barulho por aqui quando foi lançada na Netflix, o que abriu espaço para que o documentário sobre o golpe sofrido por Dilma Rousseff e a crise política do Brasil mostrasse esse trágico e importante momento de nossa história se espalhasse também pelo mundo. As chances de vitória são praticamente inexistentes, mas a raiva que o longa gerou no “outro lado” já é prêmio o bastante.
Além disso, chama a atenção o fato de Petra não estar sozinha na categoria enquanto cineasta mulher: quatro dos cinco filmes indicados a melhor documentário de longa-metragem foram dirigidos ou co-dirigidos por mulheres, e a proporção se repete na categoria de melhor documentário de curta-metragem.
Com óbvia exceção das categorias de atuação feminina e de espaços vistos como sendo “mais femininos”, como figurino e maquiagem, as raras mulheres indicadas tendem a aparecer sozinhas em suas respectivas categorias: este ano, exemplos disso são Thelma Schoonmaker, a lendária parceira de Scorsese, indicada por O Irlandês; Hildur Guðnadóttir, reconhecida por sua trilha sonora para Coringa; e a própria Greta Gerwig, única mulher indicada na categoria de melhor roteiro adaptado (e definitivamente a mais merecedora do prêmio, que ao que tudo indica vai para Jojo Rabbit).
Aliás, Adoráveis Mulheres é vítima de uma “síndrome” absurdamente comum no Oscar: filmes dirigidos por mulheres que são indicados em inúmeras categorias (ou seja, suas qualidades são amplamente reconhecidas), mas que aparentemente se dirigiram sozinhos (pois, é claro, ficam de fora da categoria de melhor direção).
Um exemplo recente disso foi Inverno da Alma, indicado a melhor filme, melhor roteiro adaptado, melhor atriz (Jennifer Lawrence) e melhor ator coadjuvante (John Hawkes), mas cuja diretora, Debra Granik, não foi reconhecida — além de ter demorado oito anos para conseguir fazer seu próximo longa-metragem, Sem Rastros, lançado em 2018 e que, apesar das críticas altamente positivas (foi o segundo filme, depois de Paddington 2, a alcançar 100% no Rotten Tomatoes)… e passou batido na temporada de premiações do ano passado.
Mas a situação de Adoráveis Mulheres chama ainda mais atenção, já que a magnífica obra recebeu seis indicações — melhor filme, melhor atriz (Saoirse Ronan), melhor atriz coadjuvante (Florence Pugh), melhor trilha sonora e melhor figurino —, mas tudo isso ainda não foi o bastante para render uma indicação a Gerwig por sua direção, mesmo que a Academia já tenha a indicado anteriormente, mesmo que Adoráveis Mulheres seja uma evolução gigantesca em relação a Lady Bird.
Halle Berry vencendo o Oscar de melhor atriz em 2002 não abriu as portas para atrizes e atores negros (e chega a ser impressionante o quanto a Academia dá mais atenção a eles quando interpretam escravos do que qualquer outro tipo de personagem); a vitória de Moonlight não significou um espaço maior para filmes “de arte”; a Academia vai voltar a ignorar totalmente o cinema asiático ano que vem, apesar do fenômeno Parasita nesta edição. E talvez demorem mais trinta anos até que Kathryn Bigelow deixe de ser a única diretora a ter vencido o Oscar — que, apesar de tudo, ainda é a cerimônia mais celebrada da indústria e responsável por abrir inúmeras portas para quem se destaca por lá.
Por isso, assim como em qualquer outro espaço, é preciso destacar a importância da inclusão entre os indicados e entre os vencedores, ainda que o avanço pareça acontecer com um passo para a frente e dois para trás.