Deus da Carnificina

Talvez não existisse muita coisa a se fazer na hora de adaptar para os cinemas a famosa peça francesa escrita por Yasmina Reza (aqui também no roteiro), Deus da Carnificina, a não ser conseguir manter a naturalidade e o peso do texto, ao mesmo tempo em que dá espaço para o elenco viver aquela história. Conseguir se manter por trás daquela câmera e não deixar que seu ego (ou seu nome) sejam mais importante que aquilo que mostra na tela, é para poucos. E, por sorte, Roman Polanski é um desses exemplos.

Na trama, um único ponto a ser seguido: sem reviravoltas e surpresas, apenas um estudo profundo sobre o ser humano, que começa após duas crianças de 11 anos se envolverem em uma briga em um playground, o que faz com que seus pais resolvam se encontrar e tentar aparar qualquer assunto que tenha ficado em aberto entre os dois meninos.

E Deus da Carnificina é sobre exatamente isso: dois lados, um confronto, mas nesse caso, um em que não existem vencedores. Os quatro se encontram na casa dos pais de um deles, vividos por John C. Reilly e Jodie Foster, ele um vendedor de produtos de banheiro e ela uma escritora cheia de ideologias e que agora trabalha em um livro sobre Darfur. Do outro lado Christoph Waltz e Kate Winslet são um casal rico e “aparentemente” esnobe, ele um advogado em meio a uma crise com um de seus poderosos clientes e ela, apenas uma esposa, mesmo que hesite ao apontar sua ocupação ligada ao mercado de imóveis.

“Aparentemente” por que é esse o objetivo da história, desconstruir todas essas certezas que o primeiro plano, em que os quatro leem uma carta de desculpas oficial na tela do computador, cria (mesmo que já de cara crie o grande conflito do filme através de uma troca de palavras). E já nesse ponto, de modo sutil Polanski já começa a criar essa dinâmica que move o filme, onde sua câmera serve apenas para encarar esses quatro personagens ao mesmo tempo em que, de modo habilidoso, separa, junta, afasta e encara cada um desse grupo diante de cada um dos assuntos que explodem naquela sala de estar.

Polanski então, talvez por não ter muito o que fazer a não ser observar seus atores, se diverte em uma espécie de “estudo de plano”, onde a cada corte coloca, ajeita e separa essas quatro opiniões em planos tão específicos que é impossível não apostar, logo de cara, que caminho cada um tomará em cada sequência. Algo que pode parecer previsível, mas acaba criando ordem dentro do caos de todas aquelas ideias e opiniões. Um equilíbrio que permite certa indiferença de sua câmera, como se ela não existisse, coisa que ele faz questão de ressaltar sempre que encara algum espelho (em certo momento até brinca com isso ao, literalmente, encarar um espelho de frente e sumir sem reflexo).

Se então a peça procura entender as motivações e diferenças de cada ser humano, para o diretor, o filme se torna um exercício contínuo de composição de cena e movimento de câmera, de modo tão preciso e quase subjetivo (como o olhar de um espectador invisível que participa daquilo tudo) que se permite até perder o eixo e sua fixação limpa e sua leveza enquanto vê os personagens perderem a razão para alguns copos de Whyski. Assim como, aos poucos, vai descobrindo que não existem dois lados, mas sim quatro, o que, não só afasta todos dentro desse cômodo, mas lhes deixam solitários em seus planos.

Mas tudo isso, pois Polanski sabe o material humano que tem em mãos, lhe permitindo então observar essas quatro atuações completamente geniais. São 12 indicações ao Oscar (apenas Reilly foi indicado e não ganhou) e três estatuetas (Foster com duas) nessa sala e não há nada melhor do que apenas observar o trabalho de composição de cada um desses atores. É lógico que a escalação dos quatro, logo de cara, ajuda nessa contextualização, já que Waltz e Winslet podem então aproveitar um certo tom “europeu” de suas personas e usar isso a seu favor (Waltz ainda carrega consigo um certo esnobismo vindo de seus vilões), enquanto Foster e Reilly encarnam esses americanos médios, mas, mais uma vez, é a desconstrução dessas certezas que permite o espetáculo. É um aparentem nervosismo de Foster desde o início, extremamente sutil, mas que parece vazar um pouco a cada vez que é contrariada (principalmente pelo personagem de Waltz e quando acontece Polanski faz questão de criar um animal descontrolado com seu ângulo baixo), ou uma “finesse” exagerada de Winslet, tudo ali parece fadado a explodir, e é isso que acontece.

Mas O Deus da Carnificina não pega o caminho doloroso da verdade e faz o espectador sair do cinema deprimido pelo choque de realidade com que o texto trabalha, mas muito pelo contrário, já que diminui todo esse peso com momentos completamente divertidos que, mesmo sem deixar que o filme se torne uma comédia, aposta em um certo riso nervoso e que, quase sempre, acaba logo em seguida quando se esfrega na cara do espectador a hipocrisia de certas verdades.

E por mais que pareça estar na moda contra o “bullying”, o filme de Polanski parece se importar muito mais em mostrar o que é preciso para que a verdade de cada pessoa venha à tona, mesmo que para isso seja necessário destruir completamente o status quo de uma família. Ou apenas um jogo com esses instintos vazios e pragmáticos que cada um luta para que não sejam descobertos, mas que, vez ou outra, precisam ser encarados, mesmo que, no final das contas, tudo possa volta a ser como era, o celular volte a tocar e a flor ainda possa voltar à seu vaso, como se nada tivesse acontecido. Afinal, as duas crianças, mais dia ou menos dia, irão volta àquele playground e tudo se resolverá.


Carnage(Fra/Ale/Pol/Esp, 2012) escrito por Yamina Reza e Roman Polanski, dirigido por Roman Polanski, com Jodie Foster, Kate Winslet, Crhstoph Waltz e John C. Reilly.


Trailer

Continue navegando no CinemAqui:

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Menu