Doutora Liza | Humano e indispensável


Doutora Liza é uma biografia louvável que você irá descobrir ser baseada na história de vida de Elizaveta Petrovna Glinka, uma humanitária e palioativista russa. Os palioativistas são pessoas que auxiliam outras a diminuir sua dor frente as agruras do mundo. Eles não são a solução final, são um tapinha nas costas e uma sopa quente.

No caso de Glinka é muito mais que isso: são todos os seus dias, de corpo e alma. Ela só consegue respirar quando está ajudando as pessoas em sua volta. Não digo que literalmente ela só consiga respirar nessa condição, mas é o que sentimos nesse soberbo, tenso e compenetrante filme.

O trabalho de roteiro é louvável porque não segue a cartilha de santificar ou explicar os eventos da vida da pessoa que homenageia. Esta é uma ficção que recira um dia na vida de Liza, exemplificando como foi sua vida inteira. Poética e poderosa. Ela começa sua rotina normal e de repente precisa conseguir morfina rápido para uma criança doente terminal, e de repente não sabemos se essa é sua rotina normal ou um dia atípico. Em seu semblante vemos a expressão da rotina. Não uma expressão cansada, no entanto. Ela brilha enquanto se move e abre caminho para que todos estejam bem.

Seus empecilhos são as leis burocráticas russas e em consequência seus executores, simbolizados pela figura do policial que a persegue o dia inteiro. Porém, o policial vai acabar se envolvendo no processo humanitário do trabalho de Liza, mas nada é forçado. É um processo amplo e gradual de duas horas. Você nem percebe o que está acontecendo no filme porque ele passa voando. As cena aéreas de Moscou, sempre em movimento, criam uma rima com Liza, que também nunca está parada. Seu almoço é trazido pelo marido e filho e ela engole em questão de minutos. Troca algumas frases com eles e volta à labuta.

Este também é um filme do estilo “todos se conectam”, e o mendigo do começo fará parte integrante em algumas passagens na história, não gratuitamente, mas com pertencimento. É um roteiro naturalista, um tanto televisivo, talvez parte por causa da trilha sonora batida, mas mantém uma certa dignidade e tom de urgência que controlam nossas expectativas acima de uma preguiçosa série de TV. É um trabalho coeso e aplicado, assim com as ações de Liza, que nunca desanima por pior que sejam os obstáculos. Ela “dá o seu jeito” e é lindo.

A direção também merece créditos, pois não se entrega ao caminho óbvio de trazer a emoção fácil de pessoas passando necessidades e sofrimento frente ao descaso do resto do mundo. Também não se preocupa em dar atenção desproporcional à sua heróina, para não colocá-la acima de tudo isso, pois esta é uma lição humanitária e uma certa denúncia do desdém das autoridades, e não apenas uma homenagem a uma de suas representantes.

Apesar de passar voando, Doutora Liza não é um filme fácil de assistir. Não é no estilo de que assistiríamos mais duas horas fáceis. É um trabalho tenso, atordoante e que traz um gostinho de desesperança e tristeza, embora os russos não possuam tanto o estilo de lacrimejar por bobagens. É uma passagem sóbria, mas ainda assim os acontecimentos são muito viscerais para passar batido. Note como o filme até evita nos brindar com um momento mágico entre uma criança e uma cabritinha, pois isso seria deveras emocionante, e não é esse o objetivo principal.

O objetivo principal é dizer: eis Liza, que existiu entre nós. Muitas pessoas como ela também existem. Este é um fato. E é um fato inspirador.


“Doctor Lisa” (Rus, 2020), escrito por Aleksey Ilyushkin, dirigido por Oksana Karas, com Chulpan Khamatova, Konstantin Khabenskiy e Andrzej Chyra.


O FILME FAZ PARTE DA COBERTURA DO 2° FESTIVAL DE CINEMA RUSSO

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