Drive My Car | Crítica do Filme | CinemAqui

Drive My Car | Uma viagem que não acaba

Mesmo com quase três horas de duração, Drive My Car é sobre apenas um sentimento. Aquele de interrupção, de algo que não teve tempo de ser feito, ou até do arrependimento que nunca teve tempo de ser sentido. Da cicatriza que fica por lá para ser lembrada, mas nunca é dita.

O filme é escrito por Ryûsuke Hamaguchi e Takamasa Oe, dirigido pelo primeiro e baseado, tanto no conto de mesmo nome de Haruki Murakami, quanto em mais dois que estão na mesma compilação de textos de “Men Without Women”. Mas talvez isso queira dizer pouco sobre o filme, já que ele vai além dos três. Mas faz isso com respeito ao material, delicadeza e uma sensibilidade à flora da pele.

Drive My Car está em boa parte de sua história dentro desse Saab vermelho com cara de velho, mas aparentemente, extremamente bem conservado. O dono, um experiente ator, Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) que é contratado para montar uma versão de Tio Vânia na cidade de Hiroshima. Por lá, acaba sendo obrigado a conviver com uma motorista que irá dirigir seu carro.

Parece pouco, mas não é, Kafuku é ligado ao carro não só pelo prazer de dirigi-lo, como por usar ele como preparação, onde escuta as fitas K7 com as falas da peça, o que o ajuda a decorar as linhas de Tchecov. Mas a fita foi gravada pela esposa que faleceu e isso entrega uma camada ainda mais profunda à toda situação.

Falando em “camadas”, Drive My Car, é sobre muito mais do que isso e nada é simplesmente exposto como um filme qualquer. Tudo é construído com uma calma e gentileza com os personagens que faz com que toda experiência seja terna e doce, mesmo com o amargo daquelas lembranças lá do primeiro parágrafo.

Uma traição descoberta pelo protagonista não é simplesmente uma reviravolta, mas sim um meio de alcançar sentimentos e histórias que constroem esses personagens com uma precisão e uma coragem que expõe seus sentimentos sem a mínima violência. Apenas essa vontade de pegar nas mãos de seus personagens e encontrar com eles os caminhos possíveis.

Drive My Car | Uma viagem que não acaba

A reflexão não vem com a frieza de uma vingança contra o suposto caso da esposa, mas sim uma relação que tenta entender o que estava acontecendo e que ele não tinha a oferecer.  A relação do protagonista com o ex-amante da esposa expõe o resto de uma história que estava incompleta e que é o único jeito de permitir que Kafuku possa mais uma vez viver normalmente, nem que, segundo a metáfora do conto, seja instalado ali um sistema de segurança e a porta agora fique fechada. Mas tudo deve continuar como deve ser, não como ele gostaria que fosse.

A direção de Hamaguchi coloco isso dentro do Saab vermelho, com uma simples troca de assentos e a impressão de o protagonista poder, pela primeira vez, ser o espectador de uma história que ele era coadjuvante. Um sentimento que ele esperava para sentir.

E tudo que Hamaguchi faz é sutil. Passeia pelos personagens sem apontar quem será importante e quem não, tem paciência com todos e mostra o quanto cada peça desse quebra-cabeça pode ser importante para o protagonista entender ele mesmo. Até o vazio de seu astro (e ex-amante de sua esposa) não é jogado na cara do espectador, é apenas um detalhe que vai se construindo até culminar em uma violência que ocupa esse vazio, mas o faz longe das câmeras. Longe do julgamento simples e perto da emoção retraída.

Toda essa jornada de Kafuku é presenciada pelos olhares tímidos e melancólicos da motorista e quando a trama se permite escutá-la, tudo se transforma. Misaki Watari (Tôko Miura), escondida pelo boné e tentando de sumir na paisagem, carrega sobre as costas um peso que talvez se torne o foco emocional do filme, mesmo que isso não seja desenvolvido sem a devida sutileza e capricho.

A câmera de Hamagushi dá voz à ela como se fosse apenas uma gravação do K7, sem olhar para ela, mas permitindo que o protagonista encaixe seu diálogo no vazio de suas falas. A exposição de seu passado é feita de longe, com a câmera sem coragem de chegar perto o suficiente para encarar seus olhos sem o boné cobrindo-os. O diálogo acontece na única vez que o filme se aproxima da história de Hiroshima, enquanto ela e o protagonista seguem por um caminho que deixa o ponto de impacto das bombas e encontra o mar para “reciclar” não só o que restou, mas deixar para trás aquilo que fez a cidade ser o que é. Que faz a motorista ser quem é. Que permite o protagonista entender o quanto as dores dele e dela podem ficar para trás.

Drive My Car pode ser uma metáfora só sobre o pensamentos e diálogos dentro do carro sendo deixados para trás junto do vento que bate no para-brisa, mas é sobre mais do que isso. Talvez sobre a ideia de que a culpa, o arrependimento e as dores irão sempre sobreviver nas memórias, mas que precisam ser apenas o combustível para que continuemos vivos e vivendo. Lembrando, mas sem precisar de cicatrizes, Saabs vermelhos e fitas K7.

Um filme sobre o significado de seguir em frente e encarar a plateia silenciosa enquanto cada palavra é dita com toda responsabilidade e significado de uma vida inteira de emoções. Quase três horas de uma experiência emocionante, delicada e que serve para que o espectador, pense e sinta.


“Drive My Car” (Jap, 2021); escrito por por Ryûsuke Hamaguchi e Takamasa Oe, à partir dos contos de Haruki Murakami; dirigido por Ryûsuke Hamaguchi; com Hidetoshi Nishjima, Tôko Miura, Reika Kirishima, Park Yu-rim, Jin Dae-yeon, Sonia Yuan, Ahn Hwitae, Perry Dizon e Satoko Abe


Trailer do Filme – Drive My Car

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